Oito de março e uma década de feminismo

Não sei o que é existir mulher sem feminismo porque me tornei mulher através dele.

Este ano marca dez anos desde quando o feminismo chegou na minha vida, primeiro como uma dúvida de resposta negativa porque assim o senso comum havia me ensinado, depois como descoberta e escolha. Não sei o que é existir mulher sem feminismo porque me tornei mulher através dele. Eu era uma adolescente quando a grande ficha caiu: sou feminista? Sim, eu sou feminista. Passei a encarar esse rótulo tão rejeitado como uma das minhas verdades de existência, me atrelei a essa palavra e me coloquei a viver esse sentido. Identifico nessa década momentos da minha vida se misturando à história do feminismo no mundo aonde existo. 

A internet tem um papel importantíssimo no meu acesso às ideias, leituras e discussões, além das mulheres que me ensinaram através dos livros e da vida cotidiana a experienciar uma existência em busca da liberdade. No começo foi como encontrar uma porta secreta que dava entrada a um lugar escondido, talvez cada mulher que se reconhece feminista imagine esse lugar como um espaço específico, eu imagino como uma biblioteca. Girei uma chave e abri as portas de uma imensa biblioteca que me foi escondida até então. Tinha a sensação de que havia usado óculos embaçados desde a infância, que não me permitiam enxergar a realidade. E ali, naquela biblioteca escondida eu poderia limpar meus óculos e ver com clareza. 

O que hoje é óbvio e conhecido foi um grande choque na época, entender que gênero é construído socialmente, que a socialização feminina tem uma utilidade e que eu não precisava atender a esse estereótipo foi transformador. Me tornar feminista foi um processo de aprender a enxergar, primeiro, o machismo nosso de cada dia, depois, as estruturas de opressão e coerção social que permeiam a nossa história, com o passar do tempo fui ficando tão boa nisso, em enxergar, que passaram a me tratar como chata e problematizadora. E se eu me irritava, era taxada de mal-amada e radical.

E apesar de ser conhecida por não deixar passar discursos machistas, nos meus primeiros anos como feminista recuei várias vezes para evitar polêmicas e situações desconfortáveis, deslizei inúmeras outras pensando e agindo a partir do sexismo. Ainda erro, continua a ser um desafio cotidiano exercitar a liberdade, mas esta uma década me ensinou a caminhar de mãos dadas com outras mulheres e me sinto cada vez mais potente, me sinto cada vez mais gente. E meus sentidos estão cada vez mais sensíveis ao mundo que me cerca, assim como meu espírito está cada vez mais seguro de que devo me manter de pé contra as injustiças. 

Penso também que caminhar no feminismo é se deparar com questões políticas e escolher por onde andar, determinadas escolhas podem te levar para longe desse caminho, outras podem abrir bifurcações, mas todo e qualquer passo é responsabilidade sua. Dê um passo a frente e vai ter de encarar a socialização feminina, o aborto, a heteronormatividade, o racismo, mais alguns passos e você tem de escolher reformar ou construir. Um pouco mais adiante e você vai se deparar com o debate sobre capitalismo e patriarcado a partir do feminismo e terá de optar por uma visão que opõe ou integra essas ideias. É possível ser feminista e não confrontar essas discussões? Talvez, ninguém vai cassar sua carteirinha, mas como é possível ser feminista e não confrontar essas discussões?

O feminismo enquanto teoria política e movimento social tem história, tem marcos teóricos, tem produção acadêmica e militância política, tem narrativa cultural e diretrizes para políticas públicas, aprendi que o compromisso de compreender estas ideias e exercitar estas práticas é um pressuposto básico para a transformação da realidade injusta na qual vivemos. Ser feminista e não conhecer o feminismo é uma contradição que inviabiliza o futuro, por isso, o dilema do feminismo a partir da internet talvez seja justamente delimitar o que é e o que não é, e a militância virtual tem como desafio se responsabilizar pelos efeitos de discursos vazios e superficiais. 

8 DE NARÇO

Outras duas questões que se impõem no debate atual são: admitir o sequestro das pautas feministas pelo capitalismo e reconhecer as desigualdades sociais e econômicas que diferenciam as mulheres. Encarar o feminismo como estilo de vida, produto a ser consumido, esvazia sua história e política. Ignorar que as condições materiais e o lugar social que cada mulher ocupa no mundo, além de egoísmo, é um desserviço para a causa. É preciso construir um feminismo que tenha por princípio o reconhecimento destas desigualdades para que efetivamente possamos construir um mundo melhor. 

Neste oito de março me levanto com milhões de mulheres ao redor do globo para dar continuidade à luta feminista, estamos de pé sobre a montanha erguida pelas mulheres que nos antecederam para que pudéssemos ver mais longe. Neste oito de março eu comemoro dez anos de história com o feminismo e condenso meu aprendizado numa canção entoada nas marchas de mulheres: “companheira me ajude que eu não posso andar só, sozinha ando bem, mas com você ando melhor”. Andemos. 

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