O trabalho doméstico e os ventos de Moscou

O mundo do trabalho passa por uma cruel experiência no Brasil. O dado mais chocante é o aumento do trabalho doméstico, de teor semi-escravagista.

A revelação da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua) de que mais da metade das novas ocupações em 2019 foi informal choca e faz pensar. Depois do desemprego em massa, essa é a face mais cruel de um modelo econômico altamente concentrador de renda, que se vale das vias do domínio do orçamento público e do aparelho do Estado, baseado no trabalho cruciante, para se impor.

Na pesquisa, um dado chama a atenção: o Brasil nunca teve tantas pessoas trabalhando como empregados domésticos. O número de domésticos com carteira de trabalho assinada caiu ao menor patamar da série, 1,757 milhão em novembro. Outros 4,598 milhões atuavam na informalidade, o montante mais elevado já registrado.

Segundo Luana Pinheiro, pesquisadora do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) que estuda o assunto, esse é um tipo de emprego “feminino, especialmente de mulheres negras, marcado pela baixa escolaridade e baixa renda”. “E é um perfil que tem envelhecido ao longo dos anos”, resumiu, em declaração ao jornal O Estado de S. Paulo.  

Na mesma matéria, Cimar Azeredo, diretor adjunto de Pesquisas do IBGE, diz que as mulheres representam 97% dos trabalhadores domésticos no país. “O emprego doméstico acaba sendo uma porta de entrada para essas mulheres de mais baixa escolaridade, mais baixa renda”, afirmou. Luana Pinheiro, do Ipea, lembrou que o número de empregados domésticos voltou a crescer.

Brasil do século XIX

Dizer que essa tragédia social faz parte da “modernização” das relações de trabalho é uma tremenda desfaçatez. Na verdade, ela traduz a relação entre Casa Grande e Senzala. Em poucos outros lugares do mundo, por exemplo, uma família de renda ligeiramente acima da média nacional pode dar-se o luxo de manter uma empregada doméstica cativa.

O próprio emprego doméstico, com todo o seu teor semi-escravagista, é uma anomalia que não cabe em nenhum projeto moderno de um país que já subiu alguns degraus em seu desenvolvimento. Isso só é possível pela predominância do pensamento elitista e excludente, que privilegia a acumulação da riqueza em relação à sua distribuição, a ordem macroeconômica em relação à qualidade de vida das pessoas, a benesse de poucos em relação ao bem-estar de todos.

Esses fatos dão a chance para se constatar que há um Brasil do século XIX que precisa ser resolvido por uma projeto de nação democrático, baseado nos direitos humanos fundamentais. Acabar com privilégios e arcaísmos oligárquicos que já estão sepultados há séculos por países que, não por acaso, ao fazê-lo desbloquearam seus caminhos em direção ao desenvolvimento.

Suplícios do patrões

A direita é de fato conservadora por desejar a manutenção da estrutura inviável que temos no país, e reacionária por se relacionar incestuosamente com o poder público. Daí a grande antipatia por ela arrecadada e o fato de a esquerda ter sido engolida com menos dificuldade pelo povo brasileiro ao longo do século XX. Os conceitos que a elite brasileira atribui a si própria são vistos como negativos.

Para ela, o trabalho deve ser imposto pelos suplícios dos patrões. A submissão funciona como sucedâneo da lei, conceito que está na essência das “reformas” trabalhistas e das medidas contra a estrutura sindical. Há até a ideia de uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) para extinguir a Justiça do Trabalho, que integra o Poder Judiciário, conforme estabelece a Constituição.

O âmago da questão é a forma de gerar, reproduzir e distribuir riqueza. É sobre essa pedra fundamental que se ergue toda a lógica econômica. Ela tem ocupado o centro das teorias políticas e econômicas. Esse modo de ver as coisas nos impõe desde já uma premissa: o desenvolvimento econômico e social dos países depende no essencial da forma utilizada para regular a produção e a distribuição da riqueza produzida.

Ventos de Moscou

Há, disseminada nos países dependentes dos centros capitalistas, a cantilena que imputa suas mazelas sociais à forma como os Estados têm gerido a economia. Esse é um discurso interesseiro. Por trás dele está o projeto de contenção da evolução que trouxe a relação entre capital e trabalho, engrenagem básica da sociedade capitalista, para um patamar menos truculento.

Na Inglaterra do início do século XIX, que emergia como a grande potência econômica do planeta, os trabalhadores — incluindo crianças — eram acorrentados às máquinas e trabalhavam 14, 16 horas por dia. Embora de maneira não-linear e com muitos refluxos, chegamos ao século XXI com muitos avanços.

A pressão da experiência socialista, enquanto durou, emprestou ao sistema capitalista uma lógica menos selvagem. O projeto capitalista e sua postura de representar apenas os interesses de uma classe emergente — a burguesia — foi substituído por outros, que pretendiam representar toda a sociedade.

O impasse era simples: ou o capital balanceava melhor sua relação com o trabalho, ou este, embalado pelos ventos que sopravam de Moscou, implodiria o sistema. Nessa trajetória, os trabalhadores acumularam forças e conhecimento. Mesmo com a redução da influência do socialismo no mundo, suas ideias são a base mais segura para um projeto de prevalência do trabalho sobre o capital.  

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