As derrotas devem ser laboratório para próximas vitórias, diz Linera

Aprender com os próprios erros e não perder de vista o verdadeiro inimigo são os desafios da esquerda para pavimentar o caminho de renovação do ciclo progressiva na América Latina, acredita o ex-vice-presidente da Bolívia, Álvaro García Linera.

Foto Octavio Nava/Sec. Cultura Cidadã da Cidade do México

Nesta terceira – e última – parte da entrevista ao Centro Estratégico Latino-Americano de Geopolítica – Álvaro Garcia Linera alerta para a necessidade da esquerda renovar seu discurso. Segundo ele, ao longo do processo os governos progressistas perderam a mão no diálogo com a grande massa de trabalhadores que saiu de situações de pobreza ou extrema-pobreza para uma condição social mediana e hoje não se reconhece no discurso dos governos que impulsionaram as politicas públicas para esta mudança.

Parte desta classe emergente não só não se vê mais representada na narrativa do campo progressiva como foi iludida pelo “velho neoliberalismo requentado, temperado com revanchismo e ódio de classe”. Para Linera, a saída é retomar as bases sociais dentro e fora do campo institucional.

O Vermelho publicou o conteúdo na íntegra, leia as outras duas partes :

América Latina pode apontar rumos da democracia no mundo, diz Linera

Juntos somos uma potência, diz Linera sobre a integração regional

Leia a parte 3:

Celag – Há muito tempo o senhor analisa as “classes médias de origem popular”, uma classe social que surgiu à luz das políticas sociais e econômicas progressistas da Bolívia. Como analisa seu comportamento político, no sentido amplo da palavra, e particularmente frente ao golpe de Estado? E quais ações um governo progressista deveria desenvolver para atrair para si este setor?

García Linera – Se um governo progressista vai cumprindo suas metas de melhorar as condições de vida dos setores mais humildes e pobres da sociedade, este é como um termômetro do cumprimento da regra da democracia de igualdade. Maior participação social nas decisões estatais, distribuição da riqueza, redução das desigualdades, satisfação de necessidades humanas e ampliação de direitos são os parâmetros pelos quais se avaliam as ações dos governos progressistas.

Na Bolívia, para nos fixarmos apenas em termos de capacidade aquisitiva, em 13 anos de governo progressista, cerca de 30% da população pobre e da população extremamente pobre conseguiu passar para a faixa da classe média. A maior parte segue sendo trabalhador, camponês, assalariado, mas com direitos ampliados e condições financeiras notavelmente maiores (entre 300 e 500%). Destes, uma parte importante, além de melhorar sua condição econômica, conseguiu ascensão social qualificando ou modificando sua profissão: de trabalhador braçal a trabalhador técnico; de camponês a pequeno transportador ou pequeno produtor urbano; de vendedor a profissional proprietário de uma casa financiada ou empresa e etc. ou seja, modificaram sua condição de classe passando a ser uma nova média de origem popular e indígena.

Trata-se de uma classe média que não renega sua identidade indígena porque se identifica nela, e foi a luta por sua reivindicação social a que levou a esse caminho de ascensão social; mas também porque são as redes sociais étnicas, os vínculos de identidade, o sobrenome de ayllu [povos originários dos Andes], as capilaridades do parentesco que objetivamente os brindam com o espaço social de êxito por seu trabalho, a continuidade de sua boa condição financeira, a ampliação e modernização de seus negócios. De fato, seu vínculo com o Estado, que controla 38% do PIB e é o maior contratador de obras e serviços, não conseguiu desencadear a coesão e identidade coletiva sindical e indígena, porque a preservação de usa identidade é também um ativo de seus empreendimentos econômicos. Por sua vez, trata-se também de uma classe social nova, ou seja, ainda não foi sedimentada uma cultura própria sólida resultante de sua nova condição social. Todavia não produziu ainda seus próprios prestígios em tordo dos quais as competências interclassistas se reconhecem, nem forjou seus próprios especialistas de formação de opinião pública. Por isso, apesar de ser tão numerosa quanto a classe média tradicional surgida da revolução de 1952, com seus sobrenomes notáveis e profissionalização de segunda geração, a nova classe média também está exposta aos processos de classificação, distinção e formação de opinião irradiados pela classe média tradicional.

Então sua própria qualidade social está em transição. Muitas vezes tenta imitar as posses, as atitudes e os preconceitos das classes médias tradicionais. Mas se trata de preconceitos coloniais perpetuados justamente para impedir que gente como eles, provenientes do mundo popular indígena, entrem ou sejam aceitos como integrantes plenos de classe média.

Mas a opção de renegar sua própria origem para buscar um embranquecimento social tampouco é uma aposta rentável, porque a eficácia de suas atividades trabalhistas e a melhora de sua condição financeira se devem, precisamente, à vigência de redes étnicas e a afirmação de sua identidade coletiva em seu relacionamento de trabalho com o Estado.

Esta ambivalência de ser social da nova classe média de origem popular refletiu nitidamente em seu comportamento eleitoral e diante do golpe de Estado. Uma parte notável continuou votando em Evo Morales, o que lhe permitiu uma importante votação nas cidades, e não saiu nas mobilizações convocadas pelas forças reacionárias. Os protagonistas das marchas e bloqueios urbanos foram, fundamentalmente, estudantes das universidades privadas e professores universitários das públicas, tanto que os estudantes das universidades públicas, com exceção de Sucre e Potosí – onde prevaleceu a questão regional mais que a de classe – eles tiveram pouquíssima participação.

Uma parte da nova classe média seguramente votou em candidatos opositores (nossa preferência eleitoral baixou de 61% para 47,5%), mas é provável que uma parte desses 14 pontos perdidos se deva ao fato de que nossa proposta de discurso, elaborada fundamentalmente para interpelar os setores populares baixos, não tenha significado uma resposta, nem uma identificação emotiva às expectativas da nova classe média.

As tarefas exigidas por eles são várias:

A primeira, os projetos progressistas têm que ter a capacidade de ampliar e modificar sua construção de discurso de tal forma que sobre a base irrenunciável da convocatória ao núcleo duro popular, humilde e pobre, também deve levar em conta as novas expectativas e disponibilidades dos setores médios de origem indígena-popular emergentes das próprias transformações igualitárias impulsionadas pelos governos progressistas.

Não pode dar-se por definido que as novas classes médias resultantes das políticas implementadas pelos governos progressistas sejam as que de cara vão colocar-se à frente para se opor a eles. Não é certo que haja uma “alienação” que faz com que as novas classes médias se voltem contra os projetos populares. O mais provável é que os projetos populares não compreendam as características das transformações sociais que eles mesmos criaram e tentam a manter o discurso destinado a uma realidade social inicial da qual partiram, mas que agora está modificada precisamente pelo êxito das políticas sociais implementadas.

A democracia de igualdade, se é um processo duradouro, há de promover uma transformação de mobilidade e ascensão social das classes sociais plebeias do país; então o bloco de poder inicial que deu lugar ao processo progressista ou revolucionário, com o tempo deve se transformar em outro bloco de poder, ampliando discursos e propostas em correspondência aos deslocamentos estruturais das classes sociais do país.

Em segundo lugar, os governos progressistas devem externar esforços para impedir o esmagamento classista ou que as velhas classes médias tradicionais voltem-se contra eles frente à ascensão das novas classes médias. A reclusão ressentida das classes médias sempre foi o melhor caldo de cultivo para as saídas fascistoides que resultam em argumentos morais e racistas para o pânico em que vivem diante do declive de seus privilégios de pequena classe média.

Sem negociar nem um só milimetro os processos de igualdade social, de melhoras de bem-estar popular e da ampliação das classes médias, os governos progressistas devem criar canais de comunicação com estes setores para facilitar o reconhecimento e mecanismos flexíveis de rápida mobilidade social ascendente. Deve-se compreender que as sociedades têm uma dualidade em suas formas de reconhecimento e representação: são ao mesmo tempo coletivas, sindicais, corporativas, com também individuais. E ambas devem ter modos diferentes de ser convocadas pelo Estado.

Em terceiro lugar, uma ampla política educativa e persuasiva em todos os terrenos da vida diária de desracialização das relações sociais. Todo processo de igualdade social tem um custo inevitável: a desvalorização dos privilégios das classes tradicionais. Não há outro caminho possível de implementar uma democracia de igualdade em favor das classes trabalhadoras. Mas o que sim se pode fazer é amenizar e fragmentar as resistências a estes momentos de justiça histórica.

Quais seriam os principais retrocessos que a Bolívia viria a sofrer sob um governo eleito conservador? Como é a Bolívia que prendem construir com as propostas de direita (tanto as mais radicais como aquelas que se autoproclamam moderadas)?

As forças conservadoras têm um objetivo que as justifica e as impulsiona moralmente: deter a igualdade, conter as classes plebeias vistas como “selvagens” e “criminosas”. O triunfo da restauração será o triunfo da desigualdade e da injustiça histórica convertida em Estado e narrativa oficial.

Esse passará inevitavelmente, como já aconteceu antes, por uma nova concentração da riqueza social mediante a privatização dos recursos e emprestas estatais; enfraquecimento das políticas de redistribuição que beneficiam os mais pobres e uma paralisia dos processos de mobilidade social ascendente, começando por impedir aos setores populares o acesso a contratações estatais, anular o direito dos sindicatos e organizações sociais a decidir governamentalmente sobre os assuntos nacionais, terminando em uma deterioração acelerada do acesso a uma saúde, educação e trabalho dignos por parte das classes populares.

É a receita neoliberal conhecida no mundo inteiro que na Bolívia já fracassou e voltará a fracassar em pouco tempo. O fato é que os restauradores não são portadores de um novo projeto de economia de Estado e social capaz de provocar esperanças irradiantes e adesões esperançosas. Seu projeto é o velho neoliberalismo requentado, temperado com o revanchismo e o ódio de classe. Isso move paixões por um tempo, mas não constrói sociedades de forma duradoura.

A lawfare é um fenômeno crescente no mundo, e particularmente na região latino-americana. No caso da Bolívia, apareceu com intensidade nestas semanas do golpe. Como este fenômeno vai influenciar nas próximas eleições e nos processos institucionais democráticos nos próximos anos na Bolívia?

Desde o golpe de Estado na Bolívia há quem advogue pelos culpados. Prendem os familiares que buscam roupa do filho ou do irmão processado. Assassinam a bala as populações humildes e os responsáveis tem imunidade institucional. Hoje, dois meses depois de mais de 29 assassinatos a bala e 400 feridos, não existe nem uma só investigação aberta. Mas para as secretarias e familiares de ex-ministros há dezenas de procuradores abrindo processos penais. A Justiça se tornou um escritório operacional do Ministério de Governo que distribui acusações segundo a ideologia das pessoas.

Novamente ser socialista, comunista ou indianista é um delito flagrante que justifica um linchamento midiático e uma prisão preventiva. A linguagem da vingança se apoderou do Estado. Se você tem informações objetivas já é um suspeito de motim por estar “abusando” da liberdade de informação. Se foi membro do governo anterior, o governo golpista já garantiu que vai te “caçar” e vontade não falta de pedir que você ande com seu “atestado embaixo do braço”, como faziam seus amigos militares nos tempos de ditadura.

Golpistas reprimiram durante a resistência popular – Foto: Reuters

O Direito já é só a fúria vingativa dos golpistas. Não importa nem sequer algo parecido a um equilíbrio, pois as armas e os tanques de guerra estão prestes a silenciar a qualquer momento os inquietos e descontentes.

Se estão dispostos a assassinar impunemente, não têm nenhum constrangimento moral para encarcerar ilegalmente. Por isso, utilizar a “justiça” como arma eleitoral para chantagear a sociedade, coagir candidatos e atemorizar eleitores vai ser uma rotina nas próximas semanas. A máquina de uma fraude eleitoral em favor das forças políticas da direita restauradora está em marcha.

Por ora não há nenhuma garantia de eleições livres e transparentes. Aí está a importância de uma mobilização internacional de caráter institucional e imediata para exigir um processo eleitoral limpo em que nenhum eleitor se sinta intimidado no momento de opinar ou emitir seu voto. Quanto mais instituições de caráter institucional vigiarem todos os passos e mecanismos do processo eleitoral melhor será para nos aproximarmos de eleições livres.

Depois do rompimento da institucionalidade na Bolívia, qual serão os principais desafios para o campo progressista em geral e para o MAS [partido de Evo Morales] em particular, tanto no campo político quanto no eleitoral?

Compreender que toda a transformação em favor da igualdade social inevitavelmente afetará a um segmento da sociedade que impulsionará um contra-processo social em favor da desigualdade.

Compreender que toda vitória politica é, em primeiro e em último lugar, uma vitória ideológico-cultural. Qualquer descuido nesse processo abrirá fissuras perigosas na legitimidade governamental. O poder é um convencimento tácito entre os que tem o poder, mas também com os que não o tem.

Compreender que o poder estatal é uma substância social que atravessa todas as pessoas e é constantemente monopolizada em instituições. Se uns não o tem, este não se dissolve, nem desaparece; se reconcentra na decisão e ação de outras pessoas através das mesmas ou outras instituições.

Compreender que as vitórias progressistas sempre se devem a uma combinação de lutas sociais por fora do Estado e lutas sociais dentro das instituições do Estado. A defesa das conquistas democráticas de igualdade também hão de se defender apenas com a força social institucional do Estado e com a força de mobilização social por fora do Estado. Compreender que só uma permanente e fluída retroalimentação deliberativa entre dirigentes e organizações sociais e os associados de base garantem uma inclusão sadia do povo na administração do Estado, mas também uma forte capacidade de mobilização por fora do Estado.

Compreender que as derrotas devem se converter em laboratório para as futuras vitórias.

Entrevista: Celag

Tradução e adaptação: Mariana Serafini