América Latina pode apontar rumos da democracia no mundo, diz Linera

Álvaro García Linera, é considerado um dos maiores marxistas contemporâneos da América Latina. Depois do golpe de Estado que o obrigou a deixar o posto de vice-presidente da Bolívia, o intelectual vive no exílio – primeiro no México e agora na Argentina – de onde continua a contribuir para o desenvolvimento do campo progressista na região, agora não mais pela via institucional.

Álvaro Linera, junto com Evo Morales, governaram a Bolívia por dois mandatos

Pouco depois de deixar a vice-presidência, Linera passou a integrar o Conselho Consultivo do Centro Estratégico Latino-Americano de Geopolítica (Celag), organização dedicada à investigação, estudo e análises dos fenômenos políticos, econômicos e sociais da região. Ao lado dele nesta tarefa estão outros grandes pensadores latino-americanos contemporâneos, entre eles o ex-presidente do Equador, Rafael Correa, a presidenta da Telesur, Patrícia Villegas, e os cientistas políticos argentino e brasileiro, Atílio Borón e Emir Sader, respectivamente.

A entrevista a seguir, concedida com exclusividade ao Conselho Executivo do Celag, é a primeira grande análise feita por Linera sobre o cenário político atual da Bolívia e da América Latina desde o golpe. O conteúdo será publicado pelo Vermelho na íntegra em três partes. Nesta primeira, o intelectual aborda principalmente as diferenças entre a “democracia do campo progressista” e a “democracia dos conservadores” e os desafios para a esquerda vencer esta narrativa sem maiores prejuízos para a população mais pobre.

Leia a parte 1

Celag – Comecemos falando de um elemento central da política, a democracia. Como o senhor avalia seu estado de saúde na atual América Latina em disputa?

Garacía Linera – A América Latina é o cenário de intensa disputa  pelo que se vai entender e defender como democracia. De um lado estão as forças conservadoras, neoliberais e neofascistas, para quem a democracia é e tem que ser o endurecimento dos papéis, dos lugares e das fronteiras entre os que mandam, por suas destrezas políticas, e os que obedecem, por seu hábito de submissão; entre os que têm méritos, conhecimento e são exitosos, e os que são ignorantes e por isso atrasados; entre os que têm riqueza por suas elevadas competências, e os pobres que são os fracassados. Para eles a democracia é só um mecanismo de seleção dos mais fortes, competitivos e astutos para conter e disciplinar os perdedores. Por isso não é estranho que em momentos emergenciais o discurso neoliberal transite de maneira natural ao discurso fascistoide, porque é só uma exacerbação em momentos de exceção.

Frente a eles está uma maneira plebeia de entender, praticar e defender a democracia como um contínuo movimento de ampliação dos direitos, começando pelos direitos políticos para participar da tomada de decisões da vida em comum, culminando na ampliação do direito a participar do desfrute dos bens econômicos de uma sociedade, da riqueza coletiva, dos bens coletivos e da propriedade.

Democracia como estratégias de contenção da plebe ou democracia como igualdade plebeia são as narrativas práticas do democrático que estão em disputa no território latino-americano de uma maneira tal que nenhuma consegue se consolidar de forma duradoura, em meio a avanços e retrocessos simultâneos. A democracia de igualdade retrocede no Brasil, mas triunfou no México; conquistou uma grande vitória na Argentina, mas cede frente ao neofascismo na Bolívia.

No começo do século 21 veio toda uma década de uma grande onda de ampliação substantiva da democracia que levou a que a maior parte dos países latino-americanos tivessem uma sociedade mobilizada expandindo democracia e elegendo governos progressistas que foram institucionalizando essas conquistas. Entretanto, se tratou de uma onda temporal que não conseguiu se consolidar estruturalmente, seja por limites e lutas internas ou por assédios externos, que abriu espaço a um refluxo destas experiências e a uma contra-onda conservadora. Esta última tampouco conseguiu ocupar todo o espaço continental nem articular um horizonte de expectativas de largo tempo, dando lugar a um cenário complexo de uma simultaneidade contemporânea de ondas progressistas e restauradoras, de democratizações e desdemocratizações.

O paradoxo deste cenário é que tanto a ampliação de direitos como a contrainsurgência social – de fato processos antagônicos – se dão em nome da “democracia”, é como se a palavra desempenhasse o papel de um imperativo da verdade, de que ninguém pode se desprender, mas ao qual todos querem dar sua própria definição. Portanto, o que está em disputa não é tanto a “democracia” como forma de governo, mas o que significa ser democrático: como um modo de construção ampliada das igualdades sociais substantivas, ou como um modo de sujeição às desigualdades sociais. E esta batalha pela significação do democrático, que tem por sua vez uma função particular de interpretação da realidade do mundo, tem como cenário a América Latina; uma geografia social convulsionada, intensa e em muitos aspectos vanguardista. De certo modo, o que se vai entender por democracia no mundo no futuro vai depender do que acontecer na América Latina. Está claro que para as classes populares a luta pela democracia e a importância dos atos eleitorais tem sentido se são o modo para conquistar a igualdade, a ampliação de direitos, a satisfação de necessidades. Por isso à medida que os distintos setores populares concorrem em coesão crescente, a democracia de igualdade ganha terreno e legitimidade em nossas sociedades. E inversamente, à medida em que as elites endinheiradas e privilegiadas conseguem fragmentar e desmoralizar os setores populares, a democracia de contenção adquire preponderância com seu apego aos rituais eleitorais como único conteúdo democrático. E ambas maneiras de entender a democracia hoje estão em disputa em cada rincão do continente, sem uma clara supremacia de uma sobre a outra, em uma espécie de escorregadio e geograficamente oscilante “equilíbrio catastrófico”.

Pode conviver o racismo (mais estrutural) com a democracia na América Latina? Há uma solução frente a esse impulso de ódio contra os setores populares que se observa na Bolívia, mas também muito fortemente em países como Brasil, Peru e Argentina?

Toda sociedade está composta por pessoas que tem mais dinheiro que outras; que possuem propriedades, imóveis, um ou vários, enquanto que outras não; ou famílias cujos membros de duas ou mais gerações conseguiram se profissionalizar, enquanto que outras famílias só conquistaram o bacharelado ou menos. Pois bem, essas famílias que possuem muitas propriedades, muito dinheiro, muitos recursos, ainda que não se conheçam entre si, têm afinidades em sua preocupação de defender suas riquezas, estão rodeadas de pessoas que pensam mais ou menos parecido e seus filhos se relacionam com outros jovens que ajudam a preservar ou aumentar suas posses. Esta convergência de interesses objetivos e expectativas subjetivas de conglomerados sociais é uma classe social. E o mesmo se passa com quem não tem nenhuma propriedade ou empresa. Cada um destes conglomerados é uma classe social ou uma fração de classe.

Entretanto, em sociedades pós-colonizadas, as diferenças étnicas – sejam ligadas ao idioma ou à cultura com as que inicialmente se identificava visivelmente a localização de classe colonizadora ou da classe ou classes colonizadas – com o tempo se constituem em bens igualmente monopolizáveis que demarcam distinções com efeito material em uma economia de valorizações e desvalorizações, conforme se exiba algum dos polos. Isto faz da etnia um recurso, um ativo, um “capital” no caso de exibir a etnia dominante; ou uma desvalorização de sua condição social, no caso de que se exiba a etnia dominada. Isso significa que em sociedades pós-coloniais, a etnia é um componente objetivo mais da condição de classe social, e é usado para estabelecer estratégias de contenção, desvalorização ou ascensão social.

Mas também nas sociedades pós-colonizadoras – e em momentos de uma intensificação dos fluxos migratórios de países pobres a países mais ricos – a etnia vai ser usada para regular o acesso a direitos de reconhecimento e de cidadania. Daí que, em geral no mundo, a etnia seja uma estratégia discursiva de interpretação para realocação subalternizada de classe, um modo de forçar permanentemente fronteiras imaginadas e visualizadas de classe com efeito de construção material de classe social.

Por isso todo processo de construção de igualdade social necessariamente requer demonstrar o capital étnico, diluir as fronteiras étnicas que “naturalizam” as desigualdades. Toda democracia de igualdade não só deve melhorar a condição financeira das classes populares, mas também obrigatoriamente deve suprimir as barreiras discursivas e imaginadas dos “lugares” das classes sociais. Porém, toda democracia de contenção, por sua vez, vai revitalizar e exacerbar essas diferenças étnicas precisamente para blindar os privilégios dos poucos frente a ascensão e o direito de muitos. Toda igualdade se torna porosa, difusa e flexível os lugares de classe, as profissões de classe, as fronteiras étnicas de classe. E isso corrói muitos privilégios de classe. E é contra isso que as classes que se veem afetadas por seus privilégios, antigas classes altas e médias, buscarão resistir, utilizar a força e, sobretudo, reforçar as distinções étnicas. Se trata de uma forma emocional e corporal de se opor à igualdade e, por isso, tão mais rancorosa e brutal. É o momento e convulsão política das classes privilegiadas que as leva a diluir suas diferenças com as formas fascistas de poder estatal e a revelar a postura que há por trás de qualquer democracia de contenção.

Todo processo de construção de igualdade social necessariamente requer desmontar o capital étnico, diluir as fronteiras étnicas que “naturalizam” as desigualdades.

De uma ou outra forma a etnia é, portanto, um campo de batalha da própria democracia à qual nenhum país do mundo escapa. As políticas de imigração implementadas pelos países do Norte são, sem sombra de dúvidas, políticas racistas que subalternizam e limitam direitos, planetariamente a países, ou nacionalmente às classes trabalhadores imigrantes.

O fato de que o racismo novamente tenha despertado no mundo – e, particularmente, em alguns países do continente – é um sinal da gravidade e radicalidade que estão alcançando as lutas por igualdade e contra a igualdade. E, de fato, é previsível uma intensificação das lutas pelas fronteiras étnicas como estratégia de defesa de privilégios de classe. No fundo, todo racismo é um método contrainsurgente da igualdade, ou seja, da democracia.

Entrevista: Celag

Tradução e adaptação: Mariana Serafini

N.E – A segunda e a terceira parte da entrevista serão publicadas, respectivamente, na quarta-feira (29) e na quinta-feira (30)