Por que o comunismo é perigoso, por Gustavo Barbosa

Combate ao marxismo não é delírio, mas medo real de insurgência popular contra tirania. História ensina que mesmo fracassos podem ser combustível para novas revoluções

O combate à ameaça comunista faz parte não apenas do universo bolsonarista, mas de todo projeto reacionário que precisa de um álibi para colocar suas cartas na mesa. Não é à toa que as encruzilhadas históricas onde a luta de classes se acirra são marcadas pelo fato de qualquer espirro de reformismo ou de socialdemocracia se tornar um potencial berçário de bolchevismos. É esta a maneira com que hoje se expressa um obscurantismo que bebe de referências medievais e ressuscita expressões como “Deus vult” (“Deus quer”, do latim), originária das primeiras Cruzadas do início do último milênio.

Algumas das afiliações do fenômeno bolsonarista, em regra inspiradas por Olavo de Carvalho, costumam falar em conspirações comunistas globais que envolvem desde a ONU ao Greenpeace, passando pelo bilionário George Soros, ONGs e Foro de São Paulo. Seus conceitos de comunismo são bem elásticos, como se pode perceber.

Mas nem tudo é delírio. Ainda que seja improvável a existência de conspiradores marxistas reunidos secretamente em alcovas para definir os rumos do que a malta olavista chama de globalismo, Bolsonaro está mais do que certo em temer a ameaça comunista por uma simples razão: ela, de fato, existe.

Primeiro: ela se faz presente porque precisa estar presente. Principalmente para quem luta pela superação do capitalismo persistir engajado em seus propósitos. A renúncia a este horizonte significa o abraço à utopia de que é possível humanizar o capital – esta, sim, delirante. Teríamos chegado ao malfadado “Fim da História”, concepção na qual nem o seu criador, o sociólogo liberal Francis Fukuyama, acredita mais.

Segundo: enquanto existir capitalismo existirá o fantasma do comunismo. Longe de se apresentar como um processo paralelo ao desenvolvimento histórico da economia de mercado, o socialismo científico, inaugurado por Marx e Engels, corresponde a formas que, nascidas das próprias entranhas do capitalismo, as rasgam no alvorecer de um novo mundo. Tudo é transitório e carrega em si o seu contrário, ensina a dialética do filósofo grego Heráclito, que inspirou as pesquisas de Hegel – as quais, por sua vez, serviram de base para o materialismo histórico e dialético de Marx. Liquidar de vez e para sempre com os postulados das soluções definitivas e das verdades eternas é dever de todo materialista, ensinam ele e Engels em A Ideologia Alemã.

É este tipo de verdade, vista como lei universal da vida econômica e social, que boceja quando se depara com obscenidades como o fato de pouco mais de 2 mil bilionários serem mais ricos que as 4,6 bilhões de pessoas mais pobres do planeta, segundo o mais recente relatório da Oxfam. Como, frente a isso, não reconhecer que o comunismo continua sendo uma ameaça, pouco importa se distante ou próxima?

Mas e a União Soviética? Seu fim não seria o recibo de algo que não deu certo? Por que insistir mesmo depois da derrota do modelo de sociedade que representou durante mais de 70 anos, mas que veio a sucumbir diante do triunfo da ordem capitalista?

Por mais que a experiência do socialismo soviético ou do chamado socialismo real tenha padecido num fim melancólico, é importante que tenhamos a compreensão histórica do que é fracassar. É o que propõe Alan Badiou no livro A Hipótese Comunista, quando sugere que olhemos com cuidado para a conclusão de que todas as experiências socialistas, sob o signo desta hipótese, fracassaram.

Esse fracasso seria radical, exigindo o abandono da própria ideia do comunismo? Ou é apenas relativo à via com que foi estabelecida, não sendo a forma mais apropriada para resolver o problema inicial? Sem falar na socialdemocracia e em seus direitos sociais, hoje tidos por muitos como socialismo, embora sejam concessões consolidadas no contexto da Guerra Fria e oriundas do temor de que a classe trabalhadora aderisse à empreitada soviética.

Badiou defende que o fracasso, desde que não provoque o abandono da hipótese, é apenas um trecho indesviável do percurso de sua justificação. Por quantos perrengues históricos o capitalismo e suas representações políticas tiveram que passar desde o florescimento da burguesia, nos séculos 15 e 16, e no transcorrer dos séculos 19 e 20, onde assumiram formas monárquicas, absolutistas, despóticas, republicanas, parlamentares, fascistas, colonialistas e autoritárias, até chegarem, muito recentemente, à sua atual condição – global, hegemônica e qualificada muito corretamente por Badiou como plutocrata e capital-parlamentarista a serviço dos bancos?

No prefácio do livro Chamamento ao Povo Brasileiro, que reúne textos de Carlos Marighella, Vladimir Safatle retoma a discussão sobre os perigos das conclusões açodadas. Rebatendo as opiniões de que a luta armada contra a ditadura militar brasileira teria sido um erro que descambou inevitavelmente em sua derrota, Safatle afirma ser impensável e imoral descrever dessa forma o exercício legítimo e soberano do direito natural à resistência contra a tirania. Mais: questiona em que posição de onisciência histórica se colocam os que tiram essa conclusão.

Não se pode esquecer que processos históricos são considerados um fracasso até que sejam reivindicados no interior de outras dinâmicas. Nessa esteira, Safatle traz os exemplos da Comuna de Paris, fracassada até reencarnar na vitoriosa Revolução Russa (também impensável sem o fracasso da insurreição de 1905, chamada por Lênin de “ensaio geral”), e da República Romana, superada até ser reeditada na Revolução Francesa. Adicione-se a Revolução Cubana, que não seria possível sem o retumbante fracasso do assalto ao Quartel Moncada seis anos antes, evento a partir do qual o advogado Fidel Castro despontou como liderança revolucionária que colocaria o ditador Fulgêncio Batista para correr em 1959.

Se atualmente vemos um protofascismo que se levanta contra “ameaças comunistas”, finaliza Safatle, é porque tais ameaças não são frutos de um delírio paranoico; elas existem, mas estão no futuro, de modo que o poder atual se dedica a sufocar comunistas antes mesmo de se descobrirem como tal. Quem dera se a esquerda compreendesse as amplitudes de seu horizonte histórico tão bem quanto seus adversários da vez.

O exemplo da Comuna de Paris, em 1871, é a síntese do que pode ser esse horizonte. Uma crônica de autoria incerta da época relata que “pela primeira vez ouvem-se operários trocando opiniões sobre problemas que até agora apenas os filósofos haviam abordado”. A burguesia, relata o cronista, se indaga: “Se essa gente fosse livre, o que seria de nós? O que seria deles?”. É em função do capitalismo gerar seus próprios coveiros na figura do proletariado que sua existência está irremediavelmente condenada aos assombros periódicos e regulares da ameaça comunista, encarnando e reencarnando nos becos sem saída de suas crises cíclicas.

Alexis de Tocqueville, ilustre testemunha da Revolução de 1848 na França, toma nota em suas Lembranças: “O espírito da insurreição, com efeito, circulava de uma ponta a outra dessa vasta classe e em cada uma de suas partes, como o sangue de um único corpo; enchia tanto os bairros onde não se combatia com os que serviam de teatro ao combate e penetrava em nossas casas, ao redor, acima e abaixo de nós. Os próprios lugares de que acreditávamos ser os donos formigavam de inimigos domésticos; era como uma atmosfera de guerra civil que envolvia toda Paris e na qual, qualquer fosse o lugar onde se escapasse, era preciso viver”.

É por isso que Bolsonaro está certo em ter medo.

Publicado originalmente no Outras Palavras

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