Democracia em vertigem: falsa polêmica da foto falsa de Pedro Pomar

A controvérsia estabelecida sobre a foto de Pedro Pomar e Ângelo Arroyo, dirigentes do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), na abertura do documentário “Democracia em vertigem” esclarece muita coisa.

Por Osvaldo Bertolino

A celeuma reproduz, de certa forma, a prática de valorizar mais as versões do que os fatos. Ela se insere na onda anticomunista que ganhou força com a escalada da extrema direita, sobretudo após a eleição de Jair Bolsonaro em 2018. Faz parte dessa ofensiva o revisionismo da história do comunismo, como as obras infames e extremistas O livro negro do comunismo no Brasil, de Gustavo Marques, e Borboletas e lobisomens, de Hugo Studart.

A diretora de “Democracia em vertigem”, Petra Costa, tem rebatido a tese de adulteração da foto com veemência. Assim que o assunto apareceu na mídia, ela se pronunciou e foi categórica na defesa da sua opção. Em nota, explicou a razão óbvia para a alteração – não adulteração, como diz a mídia – do simulacro da ditadura.

“Eu esperava que alguém do público notasse. Como afirmei no documentário, Pedro era o mentor político da minha mãe, e foi amplamente reconhecido que a polícia plantou armas ao redor dos corpos dos ativistas assassinados, como uma desculpa para seus assassinatos brutais”, esclareceu.

Falsa versão

O primeiro mérito dessa decisão é o de chamar a atenção para os métodos dos assassinos da Chacina da Lapa que, além do crime em si, cometeram a violência de apresentar uma falsa versão com o objetivo de simular uma troca de tiros que vitimou os dirigentes comunistas. Em se tratando de um documentário, não há como explicar algo tão complexo numa cena de poucos segundos.

Foto original e alterada

Como autor da biografia de Pedro Pomar, analisei detidamente essa foto e descrevi minuciosamente os fatos que levaram à sua divulgação pela mídia como a retratação da cena pós-fuzilaria. Havia a censura, mas o noticiário inquestionavelmente forçou a mão para apresentar a falsa versão como verdadeira. Do Quartel General onde estavam, no arborizado bairro do Ibirapuera, oficiais do II Exército divulgavam falsas informações, diligentemente reproduzidas pela mídia.

O jornal O Globo, por exemplo, noticiou que eles receberam “numerosos” telefonemas de pessoas ligadas a todas as atividades sociais do estado de São Paulo cumprimentando-os pelo êxito da operação, efetuada sem pôr em risco a integridade física dos moradores da vizinhança. As fotos da cena adulterada mostravam Pedro Pomar deitado ao lado de um revólver e os óculos caídos sobre o rosto; Ângelo Arroyo estava acompanhado de um fuzil e uma espingarda.

Mais tarde, o repórter da TV Bandeirantes Nelson Veiga, que chegou à cena do crime logo após a fuzilaria e foi expulso do local, disse que não vira o revólver e o fuzil. A requisição do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) para o exame da casa foi entregue ao Instituto de Criminalística às oito horas e trinta e cinco minutos, mas os técnicos só chegaram ao local pouco antes das onze horas.

Flagrante da fraude

Durante esse tempo, agentes vasculharam a cena do crime. Não se sabe se os tiros dados “de dentro para fora”, como consta do laudo assinado pelo perito Alceu Almeida Proença, foram inventados ou disparados pelos próprios agentes com a finalidade de incriminar as vítimas.  O documento afirma que os “ocupantes da moradia” dispararam com revólver calibre trinta e oito e carabina Winchester calibre quarenta e quatro, modelo 1892.

No entanto, conforme diz a perita Eliana Menezes Sansoni no laudo específico das armas, a pesquisa de resíduos de combustão de pólvora mostrou que os tiros eram de revólveres das marcas Taurus e OH (Orbea Hermanos). Outro dado de Eliana Menezes Sansoni que contradiz a versão de Proença é o exame em um revólver INA calibre trinta e dois, em um rifle Castelo calibre vinte e dois e em três facas — todos arrolados no auto de apreensão e ignorados pelo perito. Nas sessenta e nove fotos que ilustram a descrição da cena, apenas o Taurus e a Winchester aparecem.

Outro indício flagrante da fraude é a data requerida pelo DOPS para a perícia, 21 de dezembro, quase uma semana depois do ocorrido. No laudo do perito, não constam detalhes prosaicos, como a distância entre a posição dos corpos e as armas. Os mortos não foram examinados para constatar a presença de resíduos de pólvora nas mãos e o laudo dos legistas que fizeram a autópsia tampouco comenta a existência de vestígios de explosivo.

Matança sem justificativa

Erasmo Dias, o então secretário da Segurança Pública do Estado de São Paulo, reconheceu, em entrevista concedida a mim em seu gabinete de vereador na Câmara Municipal de São Paulo em 2001, que as únicas armas portadas pelos dirigentes do PCdoB assassinados eram canetas. Segundo ele, a matança não teve justificativa nenhuma e a explicação para a chacina, que corria à boca pequena, era a de que a reunião fora organizada pelo PCdoB, que havia dado cinco anos de trabalho à repressão com a Guerrilha nas selvas do Araguaia.

Os comandantes da operação não desconheciam o que havia dentro da casa. Foram para o local com ordens deliberadas para a encenação. A preparação do massacre, segundo a versão da ditadura, durara três meses e os idealizadores da ação sabiam minúcias da rotina da casa. Duas figuras centrais da trama estavam no comando da operação: o tenente-coronel Rufino Ferreira Neves, do DOI-Codi do II Exército,  e o delegado Sérgio Paranhos Fleury – que participou da fuzilaria – do Dops.

Pedro Pomar estava na casa por acaso; ele trocara uma viagem para o exterior com João Amazonas por conta de uma grave e súbita situação de saúde de sua esposa, Catharina. Ele não participara diretamente das operações da Guerrilha do Araguaia – ao contrário de Ângelo Arroyo e João Amazonas – por estar em atividade em outro ponto do que seria a guerra popular contra a ditadura.

Esteve em Goiás — na região onde atualmente é o estado de Tocantins —, Maranhão e Sul do estado do Pará. O plano era criar áreas de implantação de militantes, na mais rigorosa clandestinidade, para iniciar o trabalho com a população. Depois foi para o Vale do Ribeira, na região Sul do estado de São Paulo.

Corredor no Paraná

Pedro Pomar chegou à região acompanhado de José Carlos Cordeiro, militante que se desgarrara do PCB e, por conta própria, tentara organizar um núcleo guerrilheiro. A primeira providência seria comprar um sítio. Cordeiro palmilhou a região e conseguiu adquirir uma propriedade no município de Pariquera-Açu. O segundo passo seria aglutinar em torno do seu plano um grupo decidido a pegar em armas para enfrentar a ditadura.

O trabalho do PCdoB na região se estendia ao estado vizinho, Paraná, compreendendo uma grande área cravejada de pequenas cidades. A influência do grupo chegava a Londrina, à época já uma cidade de porte médio e com uma conceituada universidade estadual.

Com a ajuda de Pedro Pomar, os militantes Manoel Costa e Marília Andrade – pais de Petra Costa – chegaram a promover atividades e debates literários para os estudantes universitários. Segundo Cordeiro, a ideia era mapear um corredor no Paraná até a Argentina — onde estivera, em Buenos Aires, para fazer contato com o dirigente do PCdoB, Dynéas Aguiar.