Greve histórica contra Macron demonstra força do sindicalismo francês

Mobilização mostra a força de um movimento sindical que reluta em ceder conquistas acumuladas ao longo de anos de disputas com diferentes governos e com associações patronais

A França vive desde o dia 5 de dezembro a mais longa greve já registrada em sua história. Milhares de trabalhadores, ligados especialmente ao setor de transportes, estão parados há mais de 40 dias contra uma proposta de reforma do sistema de aposentadoria apresentada pelo governo.

A mobilização mostra a força de um movimento sindical que reluta em ceder conquistas acumuladas ao longo de anos de disputas com diferentes governos e com associações patronais, num país que conta com um robusto sistema de saúde, de educação e de Previdência públicas fortemente atrelado à articulação dos trabalhadores organizados.

A luta do movimento sindical é apoiada pela maioria dos franceses – 60% dizem ser favoráveis à mobilização contra a reforma da Previdência proposta pelo presidente Emmanuel Macron e negociada por seu primeiro-ministro, Édouard Philippe.

Esse apoio popular mantém-se estável há mais de um mês, a despeito do transtorno causado sobretudo na capital, Paris, uma cidade que, para funcionar, depende do transporte público – ônibus, trens, VLT (Veículo Leve Sobre Trilhos) e uma extensa rede de metrô, fundamental especialmente durante o inverno, quando os dias chuvosos, as baixas temperaturas e a pouca luz solar pioram ainda mais o humor dos parisienses.

Desde o início da greve, os metrôs e trens estão lotados por causa do funcionamento intermitente das linhas. São justamente os trabalhadores das linhas férreas, os combativos “cheminots”, que levam à frente a resistência contra todo tipo de mudança que possa ser vista como perda de direitos.

O país, berço da revolução que, em 1789, derrubou pela primeira vez a monarquia (sistema que ainda viria a ser restaurado em novos moldes entre 1814 e 1848, antes de extinguir-se definitivamente), orgulha-se do passado de revoltas populares bem-sucedidas contra aristocratas e burocratas distantes do povo. A imagem da guilhotina cortando cabeças de políticos abastados ronda os discursos autorreferentes dos franceses, além de slogans e cartazes que animam manifestações por vezes violentas.

Esse papel de vanguarda da luta popular fortalece os líderes do movimento sindical, ainda que os chamados “cheminots” sejam vistos por muitos cidadãos como detentores de direitos que, com o passar do tempo, se transformaram em meros privilégios. Enquanto a maioria dos franceses se aposenta hoje aos 62 anos, muitos trabalhadores das linhas férreas têm direito a parar de trabalhar aos 50.

O benefício é herança de um tempo em que as máquinas funcionavam a carvão e a expectativa de vida de um trabalhador que passava parte do tempo no subterrâneo da cidade era muito menor. Ainda assim, um estudo realizado em março por especialistas contratados pelo jornal francês Le Parisien mostrou que, de fato, a qualidade do ar no metrô de Paris é, em média, 12 vezes pior que a de céu aberto. Em algumas estações, a medida pode ser 30 vezes pior graças à maior concentração de partículas finas – as mais nocivas para a saúde.

O regime de aposentadoria dos trabalhadores das linhas férreas não é o único a destoar do restante dos empregados de empresas públicas e privadas. A França tem 42 regimes diferentes – alguns deles obsoletos e residuais, ligados a profissões extintas ou quase extintas. O problema é que o governo, ao propor unificar todos esses sistemas num único modelo por acúmulo de pontos ao longo da vida profissional de cada trabalhador, não leva em conta as diferenças que ainda persistem em diversas categorias.

Uma vitória insuficiente

No início do ano, quando a greve já passava de um mês, o premiê Philippe anunciou que o governo estava disposto a ceder na fixação da chamada “idade pivô”, a partir da qual os trabalhadores poderiam acessar o valor integral de sua aposentadoria na França. Hoje, a idade para acessar a aposentadoria integral está fixada em 62 anos, condicionada a um número mínimo de contribuições (172 trimestres).

Fora disso, abaixo dessa idade ou sem que tenham sido prestadas todas as contribuições, a aposentadoria acontece com decréscimos, abaixo do valor integral. De uma forma ou de outra, ao atingir 67 anos, todo francês acaba se aposentando com o valor integral, independentemente do número de contribuições que tenha feito ao longo da vida.

Na nova proposta do governo, qualquer trabalhador poderá se aposentar aos 64 anos, recebendo o equivalente a um número de pontos acumulados no novo sistema. A ideia de uma aposentadoria de valor integral ou parcial desaparece – tudo passa a ser relativo aos pontos acumulados.

O trabalhador que segue ativo e contribuindo, portanto, acumulando pontos após os 64 anos, recebe 5% a mais por cada ponto aos 65 anos, 10% a mais aos 66 anos e assim por diante. Esse tipo de bônus multiplica de maneira substancial a remuneração à qual o aposentado terá direito.

Para o governo, trata-se de um prêmio e um estímulo para seguir produzindo, numa era em que a expectativa média de vida cresce. Para os sindicatos, é um abuso, que converte anos de descanso em anos adicionais de trabalho. O premiê Édouard Philppe recuou em 11 de janeiro da nova “idade pivô”, sob a condição de que os sindicatos apresentassem até abril uma proposta que gerasse economia equivalente ao modelo proposto.

Por parte das centrais sindicais consideradas mais moderadas – a principal delas, a Confederação Francesa dos Trabalhadores Cristãos –, o recuo de Philippe foi considerado suficiente para encerrar a greve. Outros líderes do movimento, porém, decidiram manter a paralisação.

Um grupo de cinco das oito organizações sindicais existentes na França realizou na quinta-feira (16) uma série de grandes marchas em várias cidades do país, levando a greve histórica a seu 43º dia. Para os líderes renitentes desse movimento, a mobilização deve ser mantida até que o governo desista integralmente da reforma –ou, na palavra de alguns deles, até que Macron “fique de joelhos”.

Esses líderes mais radicais – entre os quais o mais conhecido é o secretário-geral da Central Geral do Trabalho, Phillippe Martinez, reconhecível por seu vasto bigode negro – acreditam que é hora de forçar a mão, agora que o governo começou a recuar. Mas é difícil prever quanto do apoio popular pode ser perdido à medida que a paralisação se mantém. Essa taxa de 60% de apoio registrada em janeiro era cinco pontos percentuais mais alta em dezembro. Além disso, as marchas têm sido menos numerosas.

Sindicatos: baixa adesão, mas grande impacto

A França tem a menor taxa de trabalhadores sindicalizados entre todos os 36 países-membros da OCDE – apenas 8%. Entretanto, 98% de todos os trabalhadores do país, sejam eles sindicalizados ou não, estão cobertos por negociações coletivas de trabalho que são conduzidas por esses sindicatos.

Essa taxa de trabalhadores cobertos por negociações coletivas de trabalho na França é a mais alta entre todos os 28 países-membros da União Europeia. O índice não passa de 59% na Alemanha e de 29% no Reino Unido. O país europeu onde esse índice de cobertura é menor é a Romênia, onde apenas 15% dos trabalhadores são beneficiados por negociações coletivas conduzidas pelo movimento sindical.

A taxa de sindicalização é historicamente baixa na França. O índice mais alto, 25%, foi alcançado em 1945, um ano depois da liberação de Paris da ocupação nazista, no fim da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Desde então, a adesão vem caindo, até estacionar ao redor dos 8%, a partir dos anos 1990 – o que, em números absolutos, corresponde a 1,8 milhão de trabalhadores sindicalizados. Essa adesão é muito maior entre trabalhadores do setor público (25%) do que entre os do setor privado (5%).

A central sindical mais antiga – e também a mais radical – da França é a Central Geral do Trabalho. Fundada em 1895, ela manteve a hegemonia do setor por 24 anos, até o surgimento da Confederação Francesa dos Trabalhadores Cristãos, em 1919.

Entre suplentes e delegados sindicais, existem na França 600 mil sindicalistas, que conduzem negociações com os patrões a respeito de tudo – da ergonomia dos móveis de um escritório às questões de higiene e segurança. Suas deliberações têm impacto sobre todos os trabalhadores de determinado ramo, sejam eles sindicalizados ou não.

“A França fez uma escolha pelo sindicalismo de reivindicação e de oposição, diferentemente de outros países, que optaram por um sindicalismo consensual”, escreveu a francesa Stéphanie Matteudi-Lecoq, doutora em Ciência Política e diretora da empresa de consultoria ADDS (Arte do Diálogo Social), que atua justamente em negociações entre patrões, governo e sindicatos.

Segundo Stéphanie, em 1791 – período que coincide com a instauração da Assembleia Constituinte, logo após a Revolução Francesa –, “a autoridade patronal era exercida sem freios sobre os trabalhadores, levando a uma relação de subordinação dos assalariados em relação aos patrões. Era uma relação desequilibrada em favor dos patrões. Trabalhadores eram proibidos de fazer reivindicações coletivas”. A greve só deixou de ser crime na França em 1884, dando início, nos séculos 19 e 20, a uma série de manifestações coletivas em que os trabalhadores continuavam em franca desvantagem.

“A história das negociações coletivas na França nos mostra a que ponto ‘negociar’ é um termo potencialmente conflitivo tanto em relação aos patrões quanto em relação a sindicatos marcados por um pano de fundo de luta de classes”, diz Stéphanie. “O patronato se opõe ao comportamento dos sindicatos e contesta a legitimidade deles, enquanto os sindicatos denunciam a atitude autoritária e antissindical.”

De acordo com Stéphanie, “cada um desses atores fica desconfiado em relação ao outro. Os conflitos se tornam recorrentes em torno de assuntos que provocam grande crispação, como a reforma no sistema de aposentadorias ou a suspensão de direitos especiais de certas categorias, como trabalhadores dos transportes, estivadores e professores”.

Com informações do Nexo

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