Argentina: novo governo mobiliza a esperança

Governo Fernández é resultado de amplas lutas populares e vigoroso debate em torno da Agenda Argentina.

A posse do presidente da Argentina, Alberto Fernández, e da vice-presidente, Cristina Kirchner, completa um mês nesta sexta-feira (10) / Foto: Instagram Aberto Fernández

O ano de 2020 começou antes mesmo da virada na Argentina. A posse do governo de Alberto Fernández e Cristina Kirchner ocorreu há um mês, no dia 10 de dezembro de 2019. Desde os primeiros momentos, a nova presidência procurou dar sinais vigorosos aos mais de 45 milhões de argentinos em relação à disposição de combate à desigualdade social e econômica existente no país.

Como uma das primeiras medidas, foi aprovada no Congresso uma Lei de Emergência, que garante o aumento do pagamento de aposentadorias por determinado período de tempo. Além disso, dá sinais de que pretende redistribuir internamente a riqueza produzida no campo e compôs ministérios com representação ampla da base de apoio popular e partidária. Na política externa, almeja se descolar do bloco conservador pró-estadunidense na região.

Medidas simbólicas também foram adotadas, como a retirada de cercas que distanciavam a população do palácio presidencial, a Casa Rosada, localizada na capital Buenos Aires.

A comparação com a chegada de supetão de Bolsonaro ao governo do país vizinho não poderia ser mais inglória ao presidente brasileiro: enquanto para Fernández a esperança é uma chave de propulsão diante do desastre neoliberal do governo de Mauricio Macri – seu antecessor –, o presidente brasileiro mobiliza os sentimentos de rancor, ressentimento, vingança e promete perseguição a tudo e a todos: comunistas, petistas, militantes de movimentos populares, universidades, ONG’s, quilombolas, indígenas…

Ao contrário de acirrar as polarizações políticas buscando atender anseios de seus eleitores, Alberto Fernández procura reconstruir um pacto social consistente e com respaldo popular.

A plataforma do novo governo da Argentina foi construída em diálogo com amplos setores da sociedade, com escuta à intelectualidade jovem do país. Prova disso é o livro Hablemos de ideas: una nueva generación piensa como governar una Argentina que cambió” (em tradução livre: Falemos de ideias: uma nova geração pensa como governar uma Argentina que mudou), da Editora Siglo XXI (2019).

A obra foi organizada por Santiago Cafiero – que após a vitória eleitoral assumiu a chefia de gabinete do presidente Fernández –, junto com Cecília Gómez Mirada – intelectual e política com forte atuação na área de gênero – e Nahuel Sosa – pesquisador e professor, um dos principais porta-vozes da Agenda Argentina, uma iniciativa lançada por diferentes grupos de pensamento crítico com o objetivo de contribuir para unidade do campo popular, mobilizando intelectuais de diferentes vertentes políticas.

Com 24 artigos curtos, escritos por diversos intelectuais, sobre temas como mercado de trabalho no século XXI, democracia participativa, impacto do neoliberalismo no governo Macri, a batalha dos imaginários, feminismo, seguridade social, temas emergentes na área de ciência e tecnologia e providências para um novo pacto social, o livro tem o objetivo de sintetizar, de forma didática, as propostas para uma nova plataforma política de governo na Argentina.

No texto “Um nuevo acuerdo social”, Cafiero e Sosa analisam as agruras do governo macrista, sistematizam os valores do sistema de poder neoliberal – a cultura do empreendedorismo, a cultura punitivista para com os mais pobres, a meritocracia, entre outros – e apontam os elementos em disputa, que, vencida a eleição, podem efetivamente balizar a construção de outra cultura política.

“Porque o que está em disputa não é apenas uma dimensão econômica, mas uma forma de compreender as transformações no mundo do trabalho: em nome da modernidade e da liberdade se pretende consolidar um fenômeno de precarização feroz, em nome da autonomia a autorrealização se transforma em autoexploração descarnada. A meritocracia, se não há um Estado que possa garantir condições de igualdade, é uma estafa sem precedentes e uma forma de individualizar problemas coletivos”, trazem os autores.

Com experiência na chefia de gabinete do governo do ex-presidente Néstor Kirchner (2003-2007), Alberto Fernández demonstra habilidade para lidar com a oposição derrotada nas urnas e com a mídia empresarial, ávida por lhe atribuir carimbos de “mais um líder populista, demagogo e autoritário do peronismo”.

Por exemplo, antes de receber os governadores de sua base de apoio, Fernández recebeu governadores da oposição, em evidente disposição de escuta e diálogo. E sem grandes dificuldades, se movendo sobre a desorientação de uma oposição derrotada, conseguiu aprovar rapidamente a Lei de Emergência no parlamento argentino.

Para nós, brasileiros, é animador perceber o conjunto de providências que a população argentina tomou para fortalecer a resistência popular e derrotar o governo Macri nas urnas.

Segundo o artigo “Los feminismos en la transición”, de Flor Minici, as crescentes mobilizações feministas desempenharam papel relevante no processo: “Construiu-se como um ator capaz de se constituir de maneira transversal e plural, colocando na agenda uma série de demandas e articulando alianças que geraram massivas mobilizações definidas por nítido caráter antineoliberal e interseccional”.

Uma das iniciativas do novo governo foi criar o Ministério de Mulheres, Gênero e Diversidade. No Brasil, o grupo no poder tem como uma das principais bandeiras o combate à inventada expressão “ideologia de gênero”, bandeira útil para criminalizar o debate feminista nas escolas e fortalecer a cultura da perseguição e denúncia contra aqueles que questionem as estruturas arcaicas do poder patriarcal no Brasil.

O governo que assumiu a presidência argentina em dezembro de 2019 demonstra consciência que o problema a ser enfrentando não é apenas o de estabilização da economia a qualquer custo. Pelo contrário, invertendo prioridades, coloca a redução da pobreza e da desigualdade a frente do pagamento da dívida externa, em grande esforço de negociação com o sistema financeiro internacional e com a oposição nacional, buscando apoio do conjunto da população, desgastada com o aumento da miséria e com o avanço do neoliberalismo.

Por isso, o povo também está disposto a dar crédito ao fôlego vigoroso das propostas e projetos de Fernández nas primeiras semanas de governo.

A nova geração de dirigentes políticos argentinos encara com lucidez o desafio de reconstruir o Estado Nacional, conforme atestam Cecilia Gómez Mirada e Federico Martelli, no texto “Los desafios políticos de uma nueva generación”: “Um novo Estado não significa um novo organograma cheio de objetivos e funções, mas uma nova cultura política geracional em acordo com as demandas e intermediações de nossa sociedade”.

Chama atenção o fato da palavra “nação” fazer parte do vocabulário corrente dos argentinos: uma preocupação que figura no horizonte como uma meta a ser atingida, por uma sociedade que já figurou no cenário internacional como um dos países com menor diferença entre ricos e pobres do planeta, antes de ter seu processo formativo interrompido por violentas ditaduras e pelo ciclo neoliberal. Um país cuja população demonstra, em grande parte, ter consciência de seus dilemas e responsabilidade com a memória histórica.

Rafael Villas Boas é Professor da Universidade de Brasília.