Existe LGBTfobia em Cuba?

No aniversário da Revolução Cubana, achamos pertinente discutir um tema que é frequentemente alvo de discussões e tentativas de intimidação não só do nosso Coletivo, mas da esquerda revolucionária como um todo – vezes por setores reacionários, outras por uma esquerda que nega as experiências históricas do socialismo.

Muito se veicula a respeito da LGBTfobia em Cuba, endossada inclusive pelo regime revolucionário que se inaugura em 1959 na ilha. A LGBTfobia cubana não é mito, bem como não é mito a LGBTfobia em todo o mundo capitalista ao longo dos séculos XX e XXI. Assim, longe de buscar defender a discriminação aos homossexuais, este texto busca explicar esse fenômeno dentro da totalidade, atualizar o debate a respeito dos avanços de Cuba e apontar uma direção para a sua erradicação.

Quando falamos de LGBTfobia, falamos sobre uma discriminação que não existe ao acaso. A homofobia existe como uma reação em defesa da instituição familiar, vital para o funcionamento do capitalismo. A família como conhecemos nem sempre existiu. No capitalismo, ela se apresenta como tendo duas funções principais: uma função econômica e uma função sociológica.

A função econômica é a reprodução da vida biológica que assegura o nascimento de novos trabalhadores, assim como a manutenção dos trabalhadores já existentes com alimentação, vestimenta, condições básicas de higiene e cuidados que garantam que estes homens e mulheres acordem no dia seguinte para seguir em mais uma jornada de trabalho. Já a função sociológica é a habilidade de que esses novos indivíduos que compõem o espaço familiar possam ser ensinados com os valores da ideologia burguesa e, assim, naturalizá-los. A impressão que precisa perdurar é de que a vida, a organização social, o trabalho, sempre foram assim e assim permanecerão – cortando desse processo qualquer perspectiva que desnaturalize o modo de produção capitalista, mostrando que, assim como ele nasceu, deve acabar.

A LGBTfobia cumpre um outro papel na sociedade capitalista: com a existência de um grupo à margem, cuja vida é tratada como sendo de “segunda categoria”, ela também é útil porque garante a existência de um grupo que se pode pagar menos ou mesmo manter desempregado, o que gera um efeito de rebaixamento dos salários de toda a classe trabalhadora, não se limitando apenas às LGBTs. Basta ver, no Brasil, a quantidade de LGBTs que ocupam postos de trabalho como o telemarketing, as lojas de shopping e o trabalho sexual.

Para entender a homofobia em Cuba, então, é preciso primeiro entender sua função dentro do mundo em que vivemos, que é hegemonicamente capitalista. Isto significa compreender, inclusive, que as experiências socialistas não tratam de destruir o mundo e reiniciá-lo do zero, como uma folha em branco, mas partir do nosso mundo em direção à emancipação humana.

Mas isso não seria suficiente para explicar. Em Cuba, há alguns elementos importantes: o catolicismo; a associação da homossexualidade com o turismo sexual que assolava a Ilha; e todo o imaginário do “homem novo” utilizado pelos revolucionários, em que os valores da masculinidade foram alçados a valores do homem guerrilheiro revolucionário, tal como imaginado por José Martí, em “Nuestra America”, onde o autor faz um elogio – e um apelo – à união dos latino-americanos por meio de sua multiplicidade étnica e cultural: o homem americano é o protagonista em busca desta soberania e autonomia política.

Martí foi uma inspiração para o movimento revolucionário de 1959 ao conclamar esses ideais de liberdade, mas também tinha uma visão própria do século XIX sobre a homossexualidade, que, claro, não se restringia somente ao espaço cubano: ao revelar os interesses das elites cubanas em anexar a ilha aos EUA depois da independência em relação à Espanha, Martí recorre ao preconceito para personificar os anexionistas: os homens viris são os autonomistas e os anexionistas possuem “braço de unhas pintadas e pulseira” e são como “insetos daninhos, que roem o osso da pátria que os nutre” (MARTÍ, 1983, pp. 194-195). Posto isto, vale salientar que nosso papel não é endemonizar Martí ou dizer que sua influência nas insurreições, revoltas e revoluções latinoamericanas é menos importante ou que deve ser descartada, mas colocar devidos autores e líderes revolucionários em seu tempo histórico, de modo que possamos compreender as suas limitações para superá-las.

Em meados da década de 70, começa a se articular a defesa dos homossexuais na ilha. Contrário ao que se veicula, essa posição não veio de setores que se opunham ao regime, mas principalmente da Federación de Mujeres de Cuba (FMC), liderada àquela altura por Vilma Espín. Inicia-se um processo de autocrítica intenso, que viria a culminar na fundação do Centro Nacional de Educação Sexual (CENESEX), em 1988.

O CENESEX cumpre a função de um centro cujos pilares são a educação popular e constrói uma série de eventos comunitários para avançar nos debates sobre suas discussões de gênero e sexualidade, na amplitude que isto requer, passando pela saúde por exemplo. Desde 2006, tem ligação com a Universidade de Ciências Médicas, em Havana. A associação trabalha em três áreas voltadas para realmente efetivar esse novo processo: atendimento médico ligado ao ensino e à pesquisa; trabalho comunitário; e assessoria jurídica em assuntos que interessem à população LGBT. O centro é dirigido por Mariela Castro, ativista pelos direitos da comunidade LGBT em Cuba e filha de Raúl Castro.

Do machismo ao racismo, contra os quais a ilha já tinha grandes avanços, adiciona-se a homofobia como fenômeno social a ser combatido.

Em 2018 iniciou-se um debate na Assembleia Constituinte Cubana sobre o reconhecimento do casamento homossexual. A criminalização da homofobia foi colocada nesta nova Constituição referendada por meio de consulta popular em fevereiro deste ano, mas o reconhecimento do casamento homoafetivo como uma instituição legal e social, não restrita a homem e mulher, como era na Constituição antiga, foi um debate colocado a parte pelo governo de Miguel Díaz-Canel, por conta da pressão de grupos religiosos e políticos conservadores que, por meio de fake news e preconceitos diversos, conseguiram impedir uma ação mais efetiva do governo cubano quanto ao casamento entre LGBTs. Esse debate é ainda complexo em Cuba e não está esgotado, dada a organização dos movimentos de direitos da população LGBT que agem para avançar nestas discussões na ilha.

É importante observar que a OMS só retira a homossexualidade da lista de doenças mentais em 1990, de modo que Cuba opera, aparentemente, no ritmo do resto do mundo, quando se trata da homofobia. Assim, também, os direitos da população LGBT só se viram conquistados nas últimas décadas. E não de forma linear em direção a um progresso, porque o movimento contrário, de aumento da violência lgbtfóbica, também pode ser observado, associado ao ressurgimento da extrema-direita como projeto em disputa.

Foco no “aparentemente”! É só na aparência que o combate à LGBTfobia em Cuba pode ser equiparado à fração capitalista do mundo. Enquanto aqui a LGBTfobia funciona como parte fundante do nosso sistema – inclusive sendo intensificada nos momentos de crise, como agora, quando as relações entre os trabalhadores e suas disputas se acirram -, lá ela existe como um resquício. Um resquício perigoso, mas que encontra na proposta política cubana uma forma de se extinguir.

Por quê? Porque a sexualidade só pode ser libertada quando não for suporte para a manutenção do sistema. Enquanto nos organizemos por uma instituição familiar, com suas funções de reprodução biológica e social, é impossível pensar uma sexualidade realmente livre. Ela sempre estará condicionada por essas funções.

No entanto, em termos históricos, é possível pensar no fim da LGBTfobia. Se ela passou a existir em algum momento, podemos acabar com ela. E isso apenas quando a nossa forma de viver não exigir a competição entre os trabalhadores, a defesa da instituição familiar e suas funções, a exploração do ser humano pelo ser humano. Para a nossa forma de viver, que é orientada pelo lucro de alguns em cima de muitos, é muito interessante ter algumas pessoas que sejam sub-humanizadas, cujas características individuais – sexualidade, etnia, gênero –, sejam colocadas, em geral, em uma posição de maior vulnerabilidade.

Estamos em um momento em que a pauta LGBT já foi absorvida, inclusive pela ideologia burguesa (ou uma caricatura dessa pauta, de modo que sirva nada ou muito pouco para as LGBTs e muito para os capitalistas, sejam estes LGBTs ou não). Uma revolução do século XXI não poderá cometer os erros históricos que as experiências revolucionárias da nossa classe cometeram no tocante à população LGBT, inclusive Cuba. Ou seja, a construção do socialismo não é isenta de se apoiar sobre preceitos discriminatórios e nem de trazer elementos do mundo onde se funda, dos piores aos melhores elementos. Ela nasce no velho mundo, embora gere o novo. É seu dever, no entanto, lapidar a construção da igualdade.

Assim, descarta-se a crítica oportunista a Cuba. Aquela que, “preocupada com a LGBTfobia”, parece se despreocupar com as suas verdadeiras raízes e verdadeiras maneiras de combatê-la. As acusações que ignoram os avanços da ilha nos últimos sessenta anos, pintando convenientemente o socialismo como obra de um museu onde se expõe o longínquo século XX, um socialismo estático, morto. Descarta-se a crítica que acha que a LGBTfobia é produto do aleatório, que existe como um elemento anulador ou positivador de um regime, sem nenhum maior entrelaçamento com a estrutura que o acaso. Abre-se a crítica que tem como fim a emancipação humana e que por esta se guia, compreendendo e corrigindo seus erros. Uma crítica na prática.

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Fonte: Coletivo LGBT Comunista – SP