Chile 2019: protestos contra neoliberalismo acuaram a direita do país

Antes do início das manifestações diárias, o país viveu dez meses de turbulências econômicas que servem para explicar o que aconteceu depois, embora sejam os mesmos problemas que o país enfrenta há décadas

Manifestações em Santiago. Foto: Ivan Alvarado/Reuters

Ao se olhar para o 2019 do Chile, o primeiro a ser dito é que o ano, na verdade, começou no dia 18 de outubro. Talvez tenha havido um outro ano que aconteceu até aquele então, mas um outro, que já dura dois gigantescos, intermináveis meses, se iniciou a partir daquela explosão social.

Antes do início das manifestações diárias, o país viveu dez meses de turbulências econômicas que servem para explicar o que aconteceu depois, embora sejam os mesmos problemas que o país enfrenta há décadas, e que já desencadearam outras reações sociais – como as grandes marchas estudantis de 2006 e 2011, e do movimento contra o sistema de previdência privada, em 2015 –, mas nenhuma com a magnitude que se vê agora.

O ano começou com Piñera apostando fortemente em reforçar sua imagem de líder mundial. Em fevereiro, ele fracassou em tentar se mostrar como principal aliado do líder opositor venezuelano Juan Guaidó, quando este se autoproclamou presidente em seu país. Naquela ocasião, o colombiano Iván Duque foi o vencedor da disputa pelo protagonismo dentro da direita sul-americana: foi o que mais vezes apareceu ao lado de Guaidó, enquanto Piñera foi colocado de lado no evento de 23 de fevereiro, quando tentaram entrar em território venezuelano com um suposto carregamento de ajuda humanitária.

Em março, o chileno deu o troco, ao liderar o evento fundacional do ProSul, entidade com a qual a direita pretendia substituir a Unasul, boicotada pelos novos presidentes da região. Ao lado do próprio Iván Duque, e com o apoio de Jair Bolsonaro, Mauricio Macri, Lenín Moreno, Martín Vizcarra e Mario Abdo Benítez, Piñera se tornou o primeiro presidente pró-tempore da organização, em cerimônia realizada no Palácio de La Moneda – enquanto dezenas de milhares de manifestantes protestavam do lado de fora, especialmente pela presença do mandatário brasileiro. Contudo, também há de se considerar o fato de que o ProSul não realizou nenhum outro evento ou reunião no restante do ano.

De abril a outubro, a agenda de Piñera continuou apostando nos eventos internacionais: o país tinha, entre novembro e dezembro, uma agenda que contava com reunião da APEC, Cúpula do Clima e até mesmo a primeira final em jogo único da história da Copa Libertadores. Nesses dois meses sonhados, o presidente chileno tentaria consolidar sua imagem como líder mundial destacado, tentando se equiparar à sua maior rival política, Michelle Bachelet, que já havia sido secretária-geral da Agência ONU Mulheres durante três anos, e que recentemente assumiu como Alta Comissária da ONU para os Direitos Humanos.

Enquanto isso, a economia chilena mostrava números cada vez piores. O índice Imacec, que mede a atividade econômica, mostrou que a mineração teve uma queda de 1,6% em setembro, em comparação com o mesmo mês em 2018. O crescimento de 3,5% com relação as atividades não mineiras é uma cifra que não compensa em nada a anterior, já que a mineração do cobre ainda é responsável por mais de 60% da produção do país.

Além disso, o desemprego vem mostrando altos e baixos. Em setembro, o índice ficou em 7,5%, um número bastante positivo em comparação com os 9% de abril, mas ainda longe dos menos de 6% de antes da década passada. Quando Piñera venceu as eleições de 2017, uma de suas principais plataformas era que “o emprego iria voltar”, mas os números deste seu segundo mandato destoam do que foi prometido.

Tudo isso pode ser considerado coisa do “ano passado” no Chile. Em 18 de outubro, começou outro 2019. Quatro dias antes, os estudantes secundaristas organizaram evasões massivas do metrô, com milhares de jovens pulando as catracas. A razão foi um aumento de 30 pesos (menos de 20 centavos de real) no preço da passagem. O protesto aconteceu todos os dias durante aquela semana, e o governo reprimiu fortemente a partir do segundo dia, com ações que incluíram estudantes sendo arrancados a força de dentro dos vagões e até algumas garotas sendo desnudadas em controles de detenção nas delegacias.

Reprodução: Protesto em Santiago: 2019 é o ano em que o neoliberalismo foi posto em xeque

Durante a mesma semana, o então ministro da Economia, Juan Andrés Fontaine, chegou a dizer que o aumento só valeria em horário a partir das 7h, e que isso seria “um prêmio para os que madrugam”. Por sua parte, o presidente da empresa Metro de Santiago, Clemente Pérez, criticou a ação dos estudantes numa entrevista para a televisão local, dizendo que carecia de apoio da sociedade: “garotos, essa moda já não pegou”. Na sexta-feira, dois dias depois da profecia de Pérez, Santiago viveu sua primeira grande manifestação massiva, com mais de 200 mil nas ruas, e algumas estações de metrô e edifícios estatais incendiados pelos manifestantes.

Começou o segundo ano dentro de 2019, e que tem sido intenso até agora. A mobilização se manteve nos dois dias seguintes, e se espalhou por todas as capitais de províncias e cidades grandes e médias do país. Na noite de domingo (20/10), um Piñera completamente acuado saiu em rede nacional para dizer que, segundo ele, o país estava “em guerra contra um inimigo poderoso”, decretou Estado de exceção no país e colocou os militares nas ruas das capitais de norte a sul, e especialmente nas cidades de Santiago, Valparaíso e Concepción.

Durante o Estado de exceção, que durou até o dia 27 de outubro, ocorreu a maior parte das violações aos direitos humanos. Ao menos 18 das 25 mortes oficiais até aqui (embora algumas organizações não governamentais falem em mais de 50 mortes), e 37 dos mais de 70 casos de abuso sexual, por exemplo.

Contudo, um dos mais destacados fenômenos da repressão chilena contra a revolta popular foram os casos de lesões oculares. Até agora, já são mais de 270 casos oficiais, incluindo mais de cem com perda total da visão de um olho, e dois casos de perda total da visão de ambos os olhos: o estudante de psicologia Gustavo Gatica e a operária Fabiola Campillay.

Enquanto isso, o que começou como uma convulsão social “contra tudo isso daí”, permitindo a comparação com as jornadas de junho de 2013 no Brasil, não foram canalizadas para o discurso do combate à corrução, e sim ao da queda do modelo neoliberal. Por isso, a demanda que mais foi ganhando força com o passar dos dias foi o fim da atual constituição chilena, imposta por Pinochet em 1980, e a composição de uma Assembleia Constituinte inédita na história do país para se realizar a nova Carta Magna. Algumas manifestações (como em 25 de outubro e 8 de novembro) reuniram mais um milhão de pessoas no centro de Santiago, e mais de 2 no país inteiro.

Com a exigência de uma nova Constituição se tornando inevitável, a direita aceitou negociar um acordo com setores da centro-esquerda, para a realização de um plebiscito constitucional, que em um princípio está marcado para o dia 26 de abril de 2020. A votação perguntará se as chilenas e chilenos querem ou não uma nova Constituição, e qual fórmula preferem para a realização de uma nova.

Em uma consulta popular realizada por cerca de 300 prefeituras chilenas, entre os dias 11 e 15 de dezembro, 91% dos votantes disseram estar a favor de uma nova Constituição, e 71% mostraram preferir que ela seja feita por uma Assembleia Constituinte.

Fonte: Opera Mundi