O idioma e a história do anticomunismo

O comunismo nasceu como necessidade de um mundo sem injustiças. O anticomunismo é o seu antípoda; nasceu para preservar o mundo das injustiças.

Quem não conhece a arte, a cultura, a filosofia e a história não estima a vida. Esse é o anticomunista. Ou o fascista. Ou o nazifascista. Um morto dentro da vida. Não se está falando aqui do crítico honesto, sincero. Esse merece todo respeito. Fala-se do troglodita, muitos com pretensão à erudição. Este vive de modo primitivo, movido pela tendência de brutalizar seus atos, de exterminar semelhantes (poucas espécies animais o fazem), de agredir aquilo que não entende ou tolera. Sua cognição é mais animal do que racional.

Nas palavras de Charles Darwin, “o temor (…) de que a humanidade perca a sua posição nobre e volte à bestialidade é certamente infundado, mas as regressões ocasionais à bestialidade sempre ocorrerão. Há um chacal adormecido em cada homem”. O historiador gaúcho Décio Freitas sugere que o desafio para a humanidade tem sido “criar uma (…) ordem civilizada, um universo racional e justo, capaz de transformar a bête humaine em ange humaine“.

Projeto nacional

Como a humanidade já andou quilômetros no caminho da sua “desanimalização”, surpreende, às vezes, o grau de inserção social que a ideologia anticomunista atinge em determinados períodos históricos. Tivemos os regimes nazifascistas e, no Brasil, a ditadura militar, a base da assustadora onda de regressão civilizatória iniciada com o lavajatismo e o bolsonarismo.

A explicação é que essa ideologia reproduz a lógica da bête humaine. Ela desobstrui a via do chacal de muita gente. Sua história está ensopada de sangue, manchas indeléveis dos conflitos sociais que provocou exatamente por tentar frear o avanço da civilização. E atinge de frente o que a humanidade acumulou de discussão filosófica acerca da natureza humana.

O marxismo é apenas uma etapa histórica desse processo civilizatório, a mais elevada. Respeitem-no os que não quiserem admirá-lo. Combatê-lo acriticamente, como faz o anticomunista, é uma manifestação típica do chacal de Charles Darwin. Esse comportamento explica, por exemplo, os ataques ao Estado Democrático de Direito, produto da civilização. Ao agir dessa maneira, o anticomunista ataca toda manifestação de projeto racional.

O que define uma nação é o seu povo. O que ele pensa, como age, como defende a pátria. E quanto mais cultura tiver, mais entende filosoficamente o seu papel. Uma nação soberana e democrática, conclui-se, não tem como conviver com a ideologia do anticomunismo. A terra é denominada não pelo barro e seus compostos, mas por aquilo que produz. A civilização transforma seu estado primitivo em geração de riquezas.

Má-fé cínica

O anticomunista trata tudo isso com leviandade. Seu linguajar rude e seus adjetivos deformados e depravados – flagrados em obras como Borboletas e lobisomens, de Hugo Studart, e O livro negro do comunismo, de Gustavo Marques – e a burocratização – ou burrocratização – das letras não têm como abranger conceitos elevados. Ele está em posição antagônica à intelligentsia. É a burritsia.

Ditando regras e espalhando bílis, o anticomunista despreza tudo que vem do povo. Até a escrita. Por isso escrevem tão mal. A história mostra a origem modesta – e a modéstia – de grandes nomes da literatura mundial, um ofício que não se aprende com a arrogância acadêmica.

Jack London, que morreu aos quarenta anos com mais livros publicados do que anos de vida, dizia que sentia orgulho da sua criação enquanto carregava pesados fardos nas docas de Nova York. Walt Whitman revolucionou a poesia ao som do martelo, como carpinteiro, ou do ruído das máquinas, como tipógrafo. E foram dos maiores estrategistas das ideias.

A língua é um reflexo do meio em que as pessoas vivem. E o bom senso é o grande mestre. Num contexto de depravação, como é o do anticomunismo, a língua vai se deturpando, perdendo a majestade e a delicadeza. Os discursos mostram isso, mas a maior prova é a escrita. Palavras são castelos construídos no ar, que o tempo e o vento levam; quem escreve constrói em terreno firme.

E o anticomunismo produziu, desde o seu aparecimento, uma vasta obra que atesta a sua irrelevância e a sua má-fé cínica. Percorrê-la é um exercício de eterno retorno ao mesmo ponto de partida, ao mesmo ponto de vista.

Areia da praia

Algo que lembra um conto oriental que o iluminista Anatole France atribuiu ao padre Blanchet, segundo o cronista Humberto de Campos. Fala de um adolescente que, ao subir ao trono da Pérsia, mandou chamar os sábios do país e disse-lhes:

– Ouví dizer a um sábio, na minha infância, que os soberanos ficavam menos expostos aos erros quando eram esclarecidos pelos exemplos do passado. Quero, pois, estudar os anais dos povos. Ide, organizai uma história universal, a mais completa, e trazei-na.

Os sábios partiram, e iniciaram a obra. Dia e noite, gravando a história dos tempos mortos, fazendo ressuscitar, nela, a figura dos bons e dos maus príncipes. Ao fim de trinta anos voltaram à presença do rei. Acompanhava-os uma caravana de doze camelos, trazendo cada um quinhentos volumes.

– Senhor – disse o mais idoso dos escribas, curvando-se nos degraus do trono –, aqui tendes a obra de que nos incumbimos. Compõe-se de seis mil volumes e contém tudo que nos foi possível reunir sobre os costumes dos povos e as vicissitudes dos impérios. Os prolegômenos formam, só eles, a carga de um camelo, e os paralimpômenos a de outro.

O soberano olhou a caravana, e respondeu-lhes, rápido, sem interromper a audiência com os seus ministros:

– Senhores, eu vos agradeço o trabalho a que vos entregaste. Mas a vossa obra perdeu, para mim, a utilidade. Enquanto trabalháveis, eu envelheci. Os negócios do governo tomam-me todo o tempo. Ide, pois, e organizai uma história resumida, compatível com a brevidade da existência humana.

Os sábios tomaram o cabresto aos camelos, e partiram. Vinte anos depois, voltaram. Puxavam apenas três camelos, com mil e quinhentos volumes.

– Senhor – gemeu o deão, a voz trêmula de velhice –, aqui tendes a nossa nova obra.

– É impossível lê-la – respondeu, também trêmulo, o monarca.

– Os grandes empreendimentos não são mais para a minha idade. Resumí-a ainda, e não vos demoreis.

Ao fim de dez anos, voltaram ainda dois sábios, puxando um camelo, com quinhentos volumes.

– Abreviai mais, ainda – ordenou o rei, as mãos trementes, o rosto encarquilhado –, e regressei com brevidade se não quiserdes que eu morra sem conhecer a história dos homens.

Passados cinco anos, para à porta do palácio real um ancião, tão curvado para a terra que nunca mais pudera ver as estrelas. Puxa um camelo, que tem no dorso um grande livro. É o último sábio da Pérsia, que traz ao soberano o epítome da história da humanidade.

– Vinde depressa! Vinde depressa! – pediu-lhe o chefe da guarda, reconhecendo-o, tomando-o pelo braço.

– O rei está moribundo!

Ao ver o ancião, nonagenário como ele, o soberano pousa os olhos quase sem vista no grande livro descarregado do camelo, e murmura, entre um gemido e um suspiro:

– E eu morro sem conhecer a história dos homens!

– Senhor – respondeu-lhe o último ancião, com o último fio de voz –, eu vou resumi-la em três palavras.

E inclinando a cabeça, também, para morrer de velhice:

– Nasceram… Sofreram… Morreram…

O comunismo nasceu como necessidade de um mundo sem injustiças. O anticomunismo é o seu antípoda; nasceu para preservar o mundo das injustiças. Seu momento atual no Brasil, o do bolsonarismo-lavajatismo, é cria do nazifascismo e da ditadura militar, como naquela história do pai que caminhava na areia da praia e o filho pisava seu rastro. Alguém que ele ensinou a andar vem no seu encalço.

Fonte: O outro lado da notícia

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