Extermínio a galope no Brasil profundo

“Estamos testemunhando um capítulo da história brasileira em que o aparelho estatal, num rompante saudosista, patrocina o extermínio, sob o aspecto físico e simbólico, dos povos originários”.

Por Hesaú Rômulo*

Paulino Guajajara - Foto: Patrick Raynaud/Mídia índia

Há pouco mais de um mês Paulo Paulino Guajajara foi assassinado na Terra Indígena Arariboia. Sua morte foi resultado da escalada de ataques proferidos contra indígenas no Maranhão em virtude da exploração de madeira ilegal, prática que se intensificou na última década. A luta diária pela reivindicação do território é bandeira de luta primeira dos povos originários e no Brasil de hoje ela se transformou numa pauta de sobrevivência.

Se no começo da década a reivindicação dos povos indígenas era pela demarcação de suas terras, pela efetivação de garantias constitucionais adquiridas no final dos anos 1980, o que se tem hoje é uma ameaça explícita e um estímulo institucional ao genocídio dessa população. A discussão de outrora era pela obrigatoriedade do ensino da história indígena nas escolas públicas e hoje temos mulheres e crianças ameaçadas de morte e expulsão de suas terras.

Em reportagem de Rubens Valente e Eduardo Anizelli, para Folha de São Paulo, as professoras Inara Souza e Cleane Rodrigues comentam sobre o clima nas aldeias: “Os homens hoje passam a noite vigiando e colocam as mulheres e crianças para se esconder no mato. Eu estava lavando roupa e me assustei quando vocês chegaram. Mandei as crianças correrem todas para o mato”; enquanto a outra professora denuncia “As mães aqui estão todas com medo, as mulheres com medo. Tem muitas crianças que não vêm mais para a sala de aula. Ontem fui dar aula e tinha duas crianças na sala. É porque estão escondidas dentro do mato. Elas ficam assustadas quando ouvem a zoada dos carros. Até a gente também”. Se na favela há medo e morte, isso não é diferente na aldeia. Não existe ambiente de normalidade.

Mas qual a fonte desse retrocesso? Para responder essa pergunta é preciso entender qual o lugar do indígena na sociedade brasileira, qual a sua relação com a terra e quais as consequências imediatas da autorização eleitoral de um governo com agenda de extrema-direita.

A associação direta que o processo colonial estabeleceu do indígena foi a do não-trabalho, ao deslocá-lo da cadeia produtiva, o seu esforço laboral não contribui em coisa alguma para o desenvolvimento do país. Logo, a sua existência e modo de vida, os seus traços culturais são “preguiçosos”. Diante disto o projeto civilizatório ofereceu duas alternativas para eles: ou assimilação ou extermínio. É importante dizer, mais de uma vez se possível for, que os indígenas organizados como conhecemos hoje são fonte de resistência desse projeto. Sobreviveram na base da estratégia política de permanência e na teimosia, característica peculiar daqueles que não se dobram. Eram milhões, viraram milhares. Mas continuam na terra, continuam insistindo apesar de todos os esforços que temos feito para aniquilá-los.

Esse lugar marginalizado foi bem representado pela literatura e pela política nacional ao longo dos últimos dois séculos. O sacrifício indígena em abrir mão do seu território, das suas divindades, da sua lógica social, em favor do projeto luso-brasileiro, foi a locomotiva da exploração do território, principalmente no avanço da colonização Brasil à dentro. No meio disso tudo pouca coisa ficou intacta. No meio disso tudo o projeto do agronegócio se expandiu por cima da floresta.

O agronegócio é a outra chave para entendermos a atmosfera de guerra que temos pela frente. A partir do momento que, como disse anteriormente, um projeto político de extrema-direita é autorizado nas urnas, com uma mensagem tão explícita à disposição da mineração, extração de madeira e superexploração do território indígena, o que se pode esperar é a escalada da violência. Não há grau de institucionalidade que resista a esse ataque tão visceral e tão frontal. Estamos testemunhando um capítulo da história brasileira em que o aparelho estatal, num rompante saudosista, patrocina o extermínio, sob o aspecto físico e simbólico, dos povos originários.

Em um momento de mobilização popular altamente fragilizada, em um momento que a oposição ao governo Bolsonaro não consegue propor uma agenda a médio prazo, que seja sistemática (com raras exceções), vamos testemunhando o ano da virada sanguinária com os povos indígenas, encurralados uma vez mais.