China e o futebol como metáfora da geopolítica em transformação

"A Nova Rota da Seda é o grandioso projeto chinês . Um desafio no qual a China busca aprofundar seu processo de abertura para o mundo, propondo aos países ao longo da Rota – marítima e terrestre – um modelo econômico, político e cultural de cooperação e intercâmbio. O esporte não ficou de fora".

Por Emanuel Leite Jr.* e Carlos Rodrigues**

Futebol China

Em 2013, Xi Jinping lançou um dos mais ambiciosos projetos geopolíticos dos tempos atuais: Belt and Road Iniative (BRI), a Nova Rota da Seda. Com a BRI, a China não pretende apenas reestabelecer a antiga rota comercial, mas usar sua mensagem cultural como base para a cooperação internacional. Uma metáfora para a paz e cooperação, abertura e inclusão, aprendizagem e benefício mútuos, tendo como objetivo contribuir para o desenvolvimento das relações internacionais e econômicas do país. O discurso em torno da BRI corrobora o “Sonho Chinês” exortado por Xi, que tem na busca pelo “rejuvenescimento” um conceito para a modernização do país e seu sucesso econômico. A ideia de “rejuvenescimento” passa pela ascensão da China como protagonista e líder global, sendo parte dos “objetivos do Duplo Centenário” (do Partido Comunista Chinês, 2021, e da República Popular da China, 2049).

O esporte, em particular o futebol, constitui um dos domínios mais dinâmicos e sociologicamente esclarecedores da globalização. Sob esta perspectiva, o “Plano de desenvolvimento do futebol a médio e longo prazo (2016-2050)”, de 2016, pode nos ajudar a perceber as aspirações políticas e geopolíticas da China. O futebol entendido como promotor de intercâmbios cultural e diplomático. Também uma metáfora, como a BRI, de uma China que tenta se recolocar no centro das relações internacionais.

‘Soft power’ e futebol

Nye definiu que “poder é a habilidade de influenciar as outras pessoas para se conseguir os resultados que se deseja, o que pode ser feito através da coerção, do pagamento ou da atração”. Em contraponto ao “hard power”, que se caracterizaria pela força militar ou força econômica, haveria o ‘soft power’. “Um país pode obter os resultados que deseja na política internacional porque outros países – admirando seus valores, emulando seu exemplo e aspirando ao seu nível de prosperidade – vai querer segui-lo”.

O esporte é empregado por muitos países para aumentar sua visibilidade e criar influência. O esporte é parte da diplomacia. Na “diplomacia do esporte não-tradicional", a representação, comunicação e negociação não são exclusivas dos Estados, mas também de agentes não-estatais. Aliás, é o modelo do “Plano do Futebol”: o Estado deixa de intervir diretamente no mercado, passando a guiar e apoiar o desenvolvimento da indústria, criando uma estrutura em que permita a coexistência de várias propriedades e a competitividade no mercado, podendo, ainda, participar em conjunto na sua promoção.

O ‘Plano’ explicita a importância do futebol como instrumento diplomático e de ‘soft power’ para as autoridades chinesas. Discute a necessidade da intensificação do intercâmbio internacional, afirmando que as atividades futebolísticas são “parte fundamental da diplomacia do esporte”. Chama a atenção para a necessidade do fortalecimento da “cooperação internacional e trocas de talento na indústria futebolística”, acrescentando que os canais de intercâmbio internacionais devem ser expandidos, encorajando a todos os órgãos a promoverem variadas formas de atividades internacionais. Como se observa, “cooperação” e “intercâmbio” são duas palavras-chave tanto no ‘Plano’ quanto no discurso da BRI. O que se coaduna com ‘Os Cinco Princípios de Coexistência Pacífica’ (respeito mútuo pela soberania e integridade territorial; igualdade e benefício recíproco; não-agressão mútua; não intervenção nos assuntos internos; coexistência pacífica).

Com o lançamento do ‘Plano’, a China chocou o mundo do futebol, marcadamente eurocêntrico, com a aquisição de diversos clubes europeus, para além de contratações de jogadores em ligas como a inglesa. Estes investimentos não se restringem ao mercado futebolístico per se. Isso porque se considerarmos a teoria da “elite do poder”, de Mills, podemos constatar que os negócios no futebol podem ser uma eficaz ferramenta política e econômica, um meio através do qual se exercita e acumula o poder, adquirindo legitimidade e credibilidade, além de influência.

Por exemplo, em 2014 Xi Jinping assinou, em Abu Dhabi, um vultoso acordo de petróleo e gás. Os Emirados Árabes Unidos são parceiros estratégicos da China, uma vez que o país se encontra tanto na rota terrestre quanto marítima da BRI. Em outubro de 2015, em visita ao Reino Unido, Xi se deslocou ao centro de treinos do Manchester City e tirou uma selfie com o atacante argentino Kun Aguero e o então Primeiro-Ministro britânico David Cameron. O Manchester City pertence ao City Football Group, empresa que do Abu Dhabi United Group. Dois meses depois, a estatal China Media Capital adquiriu 13% das ações do City Football Group. Duas semanas depois, durante visita à China do príncipe de Abu Dhabi, Shaikh Mohammad Bin Zayed, foi anunciado um fundo de investimento estratégico China-EAU de US$ 10 bilhões. Já em fevereiro de 2019, o City Football Group comprou o Sichuan Jiuniu FC, de Chengdu.

Outro exemplo do futebol como elemento de aproximação é o caso do Corredor Econômico China-Paquistão (CECP). Em março de 2019, o senador paquistanês Muhammad Sadiq Sanjrani afirmou que a promoção do futebol seria estimulada a nível nacional e que para desenvolver o esporte, serão construídos dois novos estádios nas cidades de Quetta e Gwadar. Primeiro, é importante lembrarmos que desde Mao Zedong a China recorre à denominada "diplomacia dos estádios". Países da Ásia, Oceania, América Central e África foram contemplados com estádios construídos pelos chineses. Somente na África, foram 52 estádios em 35 países (The Africa Report). Quetta e Gwadar são duas cidades estratégicas no caminho do CECP, estando no trajeto do projeto da linha ferroviária que pretende ligar a China ao porto de Gwadar, localizado no Mar Arábico, sendo de extremo interesse para a rota marítima da BRI.

Como mencionado, o ‘Plano’ estimula a cooperação e o intercâmbio internacionais. Neste sentido, temos visto clubes chineses chegando ao Brasil. Como Shandong Luneng e Shanghai SIPG com centros de treinamento e parcerias em Porto Feliz-SP e Londrina-SC, respectivamente. Ao passo que o ex-jogador Ronaldo já tem oito “Ronaldo Academy” espalhadas em sete cidades chinesas. Mais recentemente, falou-se do interesse de empresas chinesas em clubes nacionais como Nacional-AM, América-MG e CSA-AL (que não se concretizaram).

Nos últimos anos, a China tem alimentado o “Sonho Chinês”. Uma ideia de “rejuvenescimento” que passa muito pela ascensão da China como protagonista e líder global. A Nova Rota da Seda é o grandioso projeto chinês neste sentido. Um desafio no qual a China busca aprofundar seu processo de abertura para o mundo, propondo aos países ao longo da Rota – marítima e terrestre – um modelo econômico, político e cultural de cooperação e intercâmbio. O esporte não ficou de fora. O ‘Plano do futebol’ é taxativo quando fala que são necessários grandes esforços para tornar real “o sonho da ascensão do futebol, o sonho de uma nação esportiva ponderosa e o sonho de rejuvenescimento da nação”. A geopolítica está em transformação. A China tem sido uma das forças motrizes desta mudança. O esporte é capaz de abrir portas e servir de instrumento diplomático, como ferramenta de ‘soft power’. E através do futebol, a China tenta se promover como uma força promotora da harmonia, cooperação e do desenvolvimento econômico.

*Emanuel Leite Jr. é Doutorando em Políticas Públicas do Departamento de Ciências Sociais, Políticas e do Território (DCSPT), pela Universidade de Aveiro, Autor dos livros “As cotas de televisão do campeonato brasileiro” (ISBN: 978-85-8165-341-9) e “A história do futebol na União Soviética” (2018, ISBN: 978-85-5996-774-6). [email protected]

**Carlos Rodrigues é Doutor em Ciências Sociais, Professor Auxiliar no Departamento de Ciências Sociais, Políticas e do Território (DCSPT), Diretor do Mestrado em Estudos Chineses da Universidade de Aveiro, Diretor do Departamento de Ciências Sociais, Políticas e do Território, Universidade de Aveiro. [email protected]