Na morte de Ágatha, governo Witzel agiu como traficantes e milicianos 

Um dos pontos que mais chamam atenção na repercussão da morte de Ágatha Félix, menina de 8 anos de idade que foi morta por uma bala perdida na noite de sexta (20), em uma localidade chamada Alvorada, no alto do Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro, é a facilidade com que parcelas da população e das redes sociais encontram justificativas para aceitar políticas de segurança pública cruéis e desumanas antes mesmo de quaisquer investigações e esclarecimentos sobre o caso.

Por Renato Sérgio de Lima*

Agatha

É verdade que o Brasil é um país com uma forte e resiliente tradição de uso da violência, mas cresce o número de pessoas que, a cada questionamento que se faz da ação policial, se contrapõem afirmando que cobrar controle e criticar padrões de policiamento mais alinhados à nossa Constituição é o mesmo do que defender “bandidos” e que a polícia precisa ser é premiada em vez de ter seus atos investigados.

Agora, o que esta parcela de defensores dos policiais não percebe é que ao mobilizar tal argumento, está, ela própria, colocando polícias e criminosos na mesma régua ética de comportamento, o que é muito mais aviltante do que cobrar controle e transparência. Não há equivalência moral, ética ou política entre cobrar o Estado para que aja dentro da lei e com respeito à vida e quando o crime mata algum agente público ou outra pessoa.

Quem cometeu um crime precisa ser investigado e punido com o rigor da lei. Não podemos pensar que o crime pode ficar impune no Brasil. Porém, precisamos, ou melhor, temos a obrigação de cobrar das polícias postura e respeito incondicional aos valores da nossa Constituição.

Temos a obrigação de cobrar, por exemplo, que o Ministério Público exerça sua função constitucional de controle da atividade policial e exija que a investigação seja independente e transparente. As polícias não são as únicas instituições da área que precisam mudar suas práticas.

E isso é muito diferente de ser inimigo das polícias e defensor de bandidos. É trabalhar com base nas evidências, que inclusive mostram quão obtusas são nossas políticas de segurança pública e como reformas estruturais são urgentes. Se considerarmos os critérios adotados internacionalmente para mensurar uso da força, o uso excessivo da força letal não é uma questão de todo o país.

Ao contrário, seria injusto acusarmos a Polícia Militar do Distrito Federal, a de Pernambuco, a de Minas Gerais ou Espírito Santo (dentre outras) de demonstrar padrões elevados de uso da força letal. Todavia, o que tem ocorrido no Rio de Janeiro é muito diferente e explicita que, por trás da ideia de “combater o inimigo”, vemos um projeto político-ideológico que coopta e se aproveita das polícias e do desespero de uma população em pânico ante a violência. Wilson Witzel percebeu esse clima social e o explora até o limite.

A questão, portanto, não é se a polícia pode ou não matar.

Enquanto as brigadas ideológicas das redes sociais se digladiam, temos um enorme problema tático e operacional que poderia ser resolvido de outra forma, já que o princípio constitucional de defesa da vida se aplica a todos, mesmo garantindo a prerrogativa de uso da força pelas polícias.

Ou seja, é uma questão de escolha entre meios e fins e que deve ser trazida ao debate. Em nome da guerra contra o crime, a política de segurança pública de Wilson Witzel ultrapassou todos os limites éticos que pudessem diferenciá-la da ação dos traficantes e milicianos que dominam os territórios abandonados pelo Estado.

O espírito de “caça” está sendo estimulado e as polícias estão sendo incentivadas a irem para cima dos “criminosos” independentemente dos custos ou efeitos colaterais.

O que importa são os resultados, argumento que a história tem sido virtuosa em nos mostrar o vínculo com as mais cruéis formas de autoritarismos. O fato é que, em momentos como o que estamos vivendo, não podemos deixar que as instituições sejam cooptadas para projetos autoritários e que violem liberdades e garantias fundamentais.

Segurança pública é uma das mais importantes missões do Estado e não pode ficar na mão de mercadores da morte e demagogos.

* Renato Sérgio de Lima, sociólogo, é professor do departamento de gestão pública da FGV/SP e diretor-presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública