As grandes divergências entre Bolsonaro e a cúpula militar 

A questão ambiental é um dos pontos de maior conflito entre o que pensam as altas patentes militares e o governo Jair Bolsonaro (PSL) hoje. Há discordâncias no campo da diplomacia – que vão desde o alinhamento automático aos Estados Unidos até a indicação de Eduardo Bolsonaro como embaixador. Eles divergem também na estratégia de não formar uma base de apoio político e na ideia de privatizar estatais, como a Petrobras. Militares e Bolsonaro não pensam em linha reta, como se supõe às pressas.

Generais

Por outro lado, há consenso dentro das Forças Armadas de que as críticas estrangeiras à política ambiental nacional escondem interesses econômicos que podem ferir a soberania do Brasil. Tal percepção é acentuada pelo arraigado sentimento territorialista dos militares, que atinge seu ápice em sua relação com a Amazônia. É uma avaliação que coincide com a posição de Bolsonaro.

É o que aponta a revista Época, em reportagem de capa nesta semana, feita com base em depoimentos de dez generais da ativa e da reserva, além de ministros e ex-ministros. Um ponto está claro: se, no início do governo, havia uma intenção dos militares em incorporar o papel de servidores do alto escalão do Estado depois de estarem por 30 anos relegados à condição de coadjuvantes do poder, hoje há uma preocupação patente em fazer com que, à luz da história, a gestão de Bolsonaro não seja lembrada como um governo militar.

Para reforçar essa ideia, militares recorrem ao expediente de que os generais presentes no Executivo são todos da reserva – com exceção do general Luiz Eduardo Ramos, que se licenciou do Comando Militar do Sudeste para assumir o cargo de Santos Cruz na Secretaria de Governo. O Exército, em si, permanece silencioso, cabendo apenas ao ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva, o respaldo político da instituição.

A reportagem relata uma cena curiosa da campanha eleitoral do ano passado, em que a aproximação entre Forças Armadas e Bolsonaro foi cristalizada. Em junho de 2018, numa cobertura na Asa Norte, em Brasília, três generais que desenhavam o programa de governo bolsonarista abandonaram suas planilhas e cronogramas sobre a mesa para debater uma situação que os intrigava.

É que, depois de chegarem às mais altas patentes antes de saírem para a reserva, eles agora trabalhavam para a eleição de um ex-militar que, sem ter ascendido nas Forças Armadas, tinha mais chances de se tornar presidente do que qualquer um deles jamais teria. “Fôssemos nós os candidatos, quantos votos teríamos?”, indagaram entre si. “Não adianta qualquer um de nós ter conhecimento se não atendemos à realidade”, argumentou um deles. Enquanto o outro arrematou, categórico: “Não sei nem se eu votaria em mim”.

A conclusão da conversa foi a seguinte: eles não estavam diante de um candidato que era a soma de “Madre Teresa, De Gaule, Churchill e Rui Barbosa”, disse um deles. Mas reconheciam que Bolsonaro atendia às necessidades do momento da caserna. “O Brasil estava diante de um precipício, prestes a cair”, avaliou um dos generais, ao se referir à possibilidade de um candidato petista vencer. À época, Fernando Haddad ainda não havia sido oficializado e Lula, mesmo preso, dizia-se candidato.

A cena descrita acima dificilmente teria ocorrido, não fosse o contexto político peculiar em que o Brasil se encontrava em 2018. Bolsonaro era o candidato que entoava o timbre mais forte contra o PT e tudo que o partido representava. Só se tornara o representante da maioria das altas patentes quando as demais candidaturas deram sinais de que não vingariam.

No Exército, a rejeição que coronéis e generais desenvolveram em relação ao então candidato tinha origem em um conjunto de condutas intrínsecas à formação militar – e que Bolsonaro, apesar de fazer a defesa irrestrita da classe, por vezes se negou a cumprir. Ao deixar os quartéis, em 1988, o hoje presidente havia golpeado alguns dos principais pilares que sustentam a cartilha, ao proceder com indisciplina e insubordinação – este último comportamento é considerado crime militar.

Em 1987, o então capitão de artilharia e paraquedista foi acusado de planejar ataques a bomba em quartéis do Rio de Janeiro em protesto contra os baixos salários da corporação. Em depoimento prestado à época, reconheceu ter cometido uma “transgressão disciplinar” e “deslealdade”.

A expulsão de Bolsonaro do Exército foi requerida pelo Alto-Comando, mas ele terminou absolvido pelo Superior Tribunal Militar (STM). Saiu da Força para a reserva obrigatória ao se eleger, em 1988, vereador pelo Rio de Janeiro. Como ex-militar, era visto fazendo piquetes frequentes contra as condições de trabalho e os salários pagos às patentes mais baixas, muitas vezes insuflando sargentos e tenentes contra coronéis e generais. Chegou a ser proibido de entrar em quartéis e não se incomodava em fazer críticas públicas ao então ministro do Exército, Leônidas Pires Gonçalves.

Ao mesmo tempo que os generais reservistas refletiam sobre a candidatura na qual haviam se envolvido, na alta cúpula do Exército, o tucano Geraldo Alckmin era visto como alternativa conveniente. Então comandante-geral da Força, o general Eduardo Villas Bôas havia recomendado ao general João Camilo Pires de Campos, ex-comandante militar do Sudeste e recém-ingressado na reserva, que auxiliasse o candidato paulista em sua campanha.

As preferências dos generais da ativa se dividiam entre Ciro Gomes e Alckmin. Mas o pedetista dinamitou pontes com o Exército ao dizer, em sabatina promovida pelo Globo, que uma declaração dada por Villas Bôas – de que a legitimidade do próximo presidente poderia ser questionada por adversários – tinha o intuito de “acalmar cadelas no cio que, embaixo dele, estão se animando”. A frase, uma alusão aos radicais das Forças, foi recebida com indignação pelos comandos e implodiu os votos que Ciro poderia vir a ter entre os mais graduados.

A indisciplina, no Exército, é falha grave sobretudo para quem está na base, ocupando patentes mais baixas. Acredita-se, entre os generais, que a disciplina seja fundamental não só para organizar a estrutura militar – mas também para reprimir a agressividade das tropas mais jovens, historicamente sujeitas a posturas intempestivas. Conclui-se, portanto, que toda tropa violenta seja indisciplinada.

Desde 1951, quando foi criada a Academia Militar das Agulhas Negras (Aman), em Resende, no estado do Rio, há ênfase na disciplina como forma de atenuar a impetuosidade entre alguns sargentos e tenentes. Esse conhecido traço de parte da juventude do Exército inspirou o deputado Eduardo Bolsonaro a se referir à hipótese de “um cabo e um soldado” bastarem para fechar o Supremo Tribunal Federal (STF), no ano passado – declaração que causou choque durante o período eleitoral.

Também a essa parcela da juventude militar o general Villas Bôas se dirigia ao postar, em uma rede social, na véspera do julgamento do habeas corpus impetrado pela defesa de Lula, em abril de 2018, uma frase que foi entendida como apelo para que o instrumento jurídico fosse negado pela Corte. Villas Bôas havia escrito que compartilhava “o anseio de todos os cidadãos de bem de repúdio à impunidade e de respeito à Constituição”.

O aplauso das baixas patentes a declarações controversas e a necessidade de Villas Bôas vir a público para pacificar os ânimos da caserna são as veias mais expostas de um Exército que nutre divergências acentuadas entre sua base e o alto generalato. Não à toa, o general Edson Leal Pujol, substituto de Villas Bôas no comando do Exército, foi aconselhado a promover uma reaproximação com as tropas tão logo assumiu o posto.

Pujol não tem contas em redes sociais, não dá entrevistas e não se pronuncia publicamente, exceto por meio de comunicados ou portarias. Em uma das últimas, divulgada em junho, recomendou que oficiais e soldados não vinculassem as ações da Força a suas contas pessoais na internet. Nas entrelinhas, a mensagem foi entendida como ordem para que oficiais da ativa deixassem de fazer postagens sobre política. A Constituição veda que militares tenham atividade política.

As diferenças entre o que pensam os militares mais jovens e os oficiais graduados são mais visíveis na Academia, em especial na EsAO e na Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (Eceme), que é o último filtro pelo qual passam antes de ascenderem ao posto de general – menos de 5% dos que ingressam na Aman conseguem chegar à última patente.

O professor de relações internacionais na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) Maurício Santoro deu aulas e seminários na Aman e na Eceme ao longo de uma década e observou mudanças importantes de pensamento – em especial nos últimos dois anos. “Houve uma mudança de mentalidade parecida com a que ocorreu na sociedade brasileira como um todo. Oficiais do Exército que sempre acharam Bolsonaro um fanfarrão de repente passaram a apoiá-lo, dizendo que ele era uma solução, uma alternativa”, avaliou o professor.

Em termos práticos, Santoro relatou que, ante críticas desferidas contra o governo vindas de professores ou alunos civis nas escolas militares, há uma defesa forte por parte da maioria dos oficiais em relação às ações do presidente. “Eles questionam como é possível criticar se há tantos nomes bons ao lado do presidente. Isso demonstra que, ainda que os generais de Bolsonaro estejam na reserva e o Exército seja uma Força de Estado, há uma grande identificação desses oficiais com o governo. Eles sentem que os militares são parte do governo Bolsonaro, ainda que o próprio presidente tenha feito críticas aos generais de seu entorno”, afirmou.

O sentimento percebido nas escolas nos últimos anos, segundo Santoro, vai na contramão de um movimento de abertura das Forças Armadas em relação à sociedade. “Desde a redemocratização, aconteceram avanços expressivos nas relações entre civis e militares, inclusive na própria formação profissional. Nos últimos dois anos, entretanto, vejo que esse legado está em risco”, disse.

As divisões na progressão da carreira são um fator de discórdia interna. Oficiais que vão para a reserva em patentes mais altas ganham mais vantagens do que aqueles que se aposentam como tenentes ou capitães. Mudanças feitas no sistema de aposentadorias ao longo das últimas duas décadas aprofundaram essa cisão.

Mais recentemente, durante a tramitação do projeto de lei que reestrutura a carreira militar, pressões vindas de setores das baixas patentes induziram a criação de uma nova categoria na carreira, a de sargento-mor, no texto elaborado pelo Ministério da Defesa. A mudança não foi bem vista pelas Forças Armadas, em geral, e terminou derrubada.

Bolsonaro sentiu o golpe da ira dos praças e chegou a sugerir que as baixas patentes se manifestassem a seus superiores sua insatisfação com o projeto. Tal ato foi visto com reserva pelos generais, que notaram na atitude do presidente uma sinalização de rompimento de hierarquia.

Por sua atuação parlamentar, Bolsonaro manteve ao longo dos anos um contato direto com as baixas patentes, que sempre foram sua principal base eleitoral. Em sete meses como presidente, compareceu mais de 15 vezes a eventos militares relacionados às baixas patentes. Seus grupos de apoiadores virtuais no WhatsApp têm forte presença militar – em alguns deles o próprio presidente participa.

É que conta um de seus amigos mais antigos, Waldir Ferraz, que trabalha para Bolsonaro há cerca de 30 anos e hoje é funcionário do PSL no Rio de Janeiro. “É uma base muito forte. Quando não é militar, é da reserva. Mas a grande maioria é sim (militar)”, disse.

Ferraz também ajuda a manter a base virtual do presidente azeitada. Em suas mais de mil conversas mantidas pelo WhatsApp, em que Ferraz divulga assuntos de interesse de Bolsonaro, misturam-se desde mensagens de apoio enviadas pelo juiz Marcelo Bretas, da Lava Jato do Rio, até elogios vindos do ator Humberto Martins. Na lista de transmissão, dezenas de sargentos, capitães e coronéis.

A identificação da base do Exército com todos os temas caros ao governo, contudo, não é unanimidade. Uma pesquisa feita pelo núcleo de estudos militares da PUC-Rio com mais de 2.700 membros das mais diversas patentes mostra viés progressista na relação do Exército com temas comportamentais, em muitos casos sensíveis aos ouvidos do presidente Jair Bolsonaro.

Mais de 70% dos entrevistados mostraram ser favoráveis à presença de mulheres nos postos de comando da carreira e também acreditar que cabe às mulheres, e não ao Estado, a decisão sobre interromper uma gravidez. Mais de 60%, em média, também se manifestaram favoravelmente à presença de professores homossexuais em escolas públicas.

Tal resultado coincide com a visão mais moderada de coronéis e generais – e essa ambiguidade interna se apresenta como explicação possível dos constantes “contrapontos” feitos pelo vice-presidente, o general Hamilton Mourão, às opiniões de Jair Bolsonaro sobre temas como aborto e religião. Depois de ser atacado nas redes sociais pelos filhos do presidente, Mourão recuou, mas conseguiu imprimir junto à opinião pública e às próprias Forças traços de moderação que faltam ao presidente.

Ainda que a hierarquia seja um princípio fundamental da formação militar, seu funcionamento é intrínseco a outro pilar – a liderança. Há consenso entre praças e generais sobre isso: em combates, não há como conduzir uma tropa apenas com disciplina e autoridade.

“Se você é autoritário e não respeita subordinado, você logo sofre uma denúncia. Só com autoridade você não consegue conduzir. Por exemplo, o sujeito vai ser denunciado no Ministério Público por um desvio no refeitório. E, mesmo que não seja verdade, isso cria um problema enorme para o comandante. Na verdade, aquele indivíduo não está preocupado com o desvio, e sim em atingir aquele comandante que está faltando com a liderança”, contou o general Villas Bôas, que, antes de ser comandante-geral do Exército entre 2015 e 2018, chefiou o Comando Militar da Amazônia e a EsAO.

Entre os entrevistados pela revista Época, Villas Bôas foi apontado por todos como uma das principais lideranças militares que já surgiram nas Forças Armadas, apesar das limitações recentes impostas por sua doença, a esclerose lateral amiotrófica. “Ele é um ícone para nós. Por seu poder de articulação, de liderança”, disse o general da reserva Eduardo Barbosa, presidente do Clube Militar do Rio de Janeiro.

Diferentemente de Villas Bôas, que é considerado um líder estratégico, o general Carlos Alberto dos Santos Cruz, demitido por Bolsonaro da Secretaria de Governo em junho, é um exemplo de liderança direta, atributo necessário para ser um bom comandante em combate. Chefe da primeira missão ofensiva da história da ONU, com autorização para atirar, Santos Cruz tinha uma característica específica para exercer liderança sobre as tropas – em grande maioria composta de estrangeiros. Em vez de ficar na retaguarda, com seu Estado-Maior, acompanhava as manobras na linha de frente, com os mais jovens. A quem lhe perguntasse a razão, Santos Cruz respondia que “a rapaziada mais jovem era mais afoita” e que, por consequência, ele também “ficava mais corajoso”.

São poucos os militares brasileiros que puderam gozar de tal experiência fora do país. A grande maioria fica no Brasil e tem como principal função ajudar a colocar em prática a estratégia da “presença”, que leva esse nome porque em muitos locais remotos o Exército é a única possibilidade de atendimento do Estado às necessidades básicas da população. Dentro dessa estratégia está a proteção da Amazônia – território que os militares conhecem bem e cuja opinião sobre a preservação do bioma coincide com a do presidente Jair Bolsonaro.

Em evento em Brasília, em 6 de agosto, o general Villas Bôas criticou países que têm se mostrado em desacordo com a política ambiental do governo, como Alemanha e Noruega. “É curioso que países como a Noruega se considerem com autoridade moral de apontar o dedo para o Brasil. A Noruega está entre os três países do mundo que pescam baleia. É o único país do mundo que explora petróleo dentro do Círculo Polar Ártico. É dona de 30% daquela empresa que provocou criminosamente o derramamento de metais pesados no Pará”, afirmou o general.

Segundo o vice-presidente, o general Hamilton Mourão, a grande contribuição dos militares é sua visão de Estado. “Nós sabemos que é preciso planejamento de Estado, políticas que perdurem independentemente do governo que entrar. Um vai um pouquinho mais para cá, outro um pouquinho mais para lá, mas o rumo é um só”, afirmou.

Isso não quer dizer que militares estejam imunes a erro, conforme apontaram todos os que foram ouvidos pela reportagem. Episódios recentes, como a prisão do sargento da Aeronáutica que carregava 39 quilos de cocaína em um voo que acompanhou a comitiva presidencial ao G20, no Japão, e o assassinato de dois civis com mais de 62 tiros em uma comunidade no Rio de Janeiro, são emblemas de que eles estão muito longe de ser os guardiões da perfeição.

Quando se entra na Aman, a primeira lição a ser aprendida é que não se cola nas avaliações – e que quem cola não prospera. Todos os militares ouvidos pela reportagem repetiram essa regra fundamental para a convivência meritocrática no Exército. Supor, num universo tão grande, que ninguém cola é jogar com uma improbabilidade. Alguns generais nunca esqueceram que Aurélio de Lira Tavares, quando estava na escola militar, colara de seu colega Orlando Geisel. Ambos, contudo, chegaram ao generalato e ao posto de ministro do Exército.