Elisa Abramovich, a comunista que virou a 1ª vereadora de São Paulo 

Nascida há cem anos, a primeira vereadora de São Paulo, Elisa Abramovich, eleita à Câmara Municipal em 1947, foi revolucionária na política e na educação de crianças. Militante do Partido Comunista do Brasil, foi uma das vítimas da Guerra Fria e teve o mandato cassado. Graças a uma resolução do ex-vereador Orlando Silva (hoje deputado federal pelo PCdoB-SP), teve seu nome registrado nos anais do Legislativo.  

Elisa Abramovitch

Era uma vez uma linda princesa que passava os dias adormecida em seu palácio, à espera do príncipe que viria despertá-la. Na sua jornada cheia de aventuranças e perigos, o príncipe aproveitava para libertar os camponeses nos campos e os operários nas cidades. Num belo dia, o príncipe chega ao palácio e desperta a Bela Adormecida com um beijo, anunciando que as injustiças do mundo vão se acabar. O príncipe encantado tem nome. Chama-se Luís Carlos Prestes. Ele é quem vai levar todo mundo para o reino mágico do comunismo. “O que é comunismo, mamãe?”, perguntavam as meninas. E a mãe explicava: “Comunismo é todo mundo poder morar num palácio”.

E era uma vez a moça guerreira que toda noite contava essas e outras histórias para suas filhas, misturando os sonhos dos contos de fadas com as utopias políticas, e dando ao herói o rosto de Prestes, então líder do Partido Comunista do Brasil, no qual ela militava. O nome da moça era Elisa Kauffmann Abramovich, que em 1947 se tornou a primeira mulher eleita para a Câmara Municipal de São Paulo (CMSP). Em idade, viveu pouco. Morreu em 1963, aos 43 anos. Mas tantas fez, com os poucos anos que teve, que sua vida ficou parecendo um daqueles contos que contava para fazer adormecer as crianças.

Elisa Kauffmann nasceu em 8 de julho de 1919. Seus pais eram judeus asquenazes (naturais do Leste Europeu) que vieram ao Brasil fugindo da miséria e dos pogrons (linchamentos em massa de judeus, praticados em vários países, principalmente na Rússia czarista). Vários asquenazes abraçaram a militância de esquerda, e com Elisa não foi diferente.

Segundo a família, o primeiro contato dela com o comunismo ocorreu quando a mãe, nascida na Bessarábia (hoje Moldávia e Ucrânia), aceitou abrigar em casa o filho de uma amiga perseguido pelas forças de repressão da ditadura do Estado Novo. O militante comunista abrigado pela família desenrolou longas conversas com Elisa e seu irmão Jacob. Conversas que fizeram a cabeça dos dois. Pouco tempo depois, ambos entraram para o Partido Comunista.

Aos 20 anos, Elisa casou-se com o comerciante Francisco Abramovich, então com 25 anos, em 25 de março de 1940. Sua primeira filha nasceu seis meses depois, em 1º de setembro. “Diziam que eu era prematura”, contou, rindo, a educadora e escritora infantil Fanny Abramovich, numa entrevista realizada em 2014 (ela morreu em 17 de novembro de 2017). Em 1943, nasceu Irene, que iria se tornar médica. A infância que ficou guardada na memória das irmãs é uma festa de cores e brincadeiras, em que Elisa usava a imaginação para disfarçar a falta de dinheiro. “Era uma época de dureza desgraçada, mas para a gente tudo era fantástico”, relembrou Irene, na mesma entrevista.

O ritual das histórias contadas antes de dormir fez Fanny descobrir a vocação que a levaria a se tornar uma celebrada escritora infantil, com mais de 40 títulos publicados. “Eram histórias bonitas, com explicações do mundo e das acontecências dele, e dum jeito que eu podia me situar num universo onde começava a engatinhar”, escreve Fanny no livro Literatura Infantil: Gostosuras e Bobices (Scipione, 1989), ao contar a origem da sua volúpia pelas histórias.

A fantasia tanto servia para voar como para situar as crianças com os pés firmes no chão do mundo. Elisa estimulava as filhas a serem independentes. Depois dos 14 anos, a mãe cortava a mesada e mandava que as filhas fossem dar seu jeito de conseguir o próprio dinheiro. Fanny foi dar aula de português para estrangeiros; Irene deu aulas de matemática. “Naquela idade, aprendemos a ganhar e gerir nosso dinheiro”, afirma Irene.

Primeira mulher

A política era presença de todo dia no apartamento de dois quartos em que a família morava, em um prédio na esquina das Ruas Prates e José Paulino, no Bom Retiro. Era uma “casa de porta aberta” para as pessoas que quisessem conversar, usar o banheiro, pedir ajuda. O local vivia cheio de militantes de esquerda. “Não sei como cabia tanta gente lá. Tinha reunião o tempo todo. Reunião do comitê estadual do Partido, do comitê central, comitê de bairro, comitê judaico, comitê de tudo”, lembra Fanny.

Gente como os líderes comunistas Carlos Marighella e Luís Carlos Prestes, o príncipe das histórias contadas por Elisa, vivia aparecendo. Com esse perfil, era natural que Elisa fosse escolhida pelo Partido para disputar as eleições municipais de 1947, as primeiras depois de 11 anos. Não conseguiu concorrer pelo Partido, contudo, porque o registro da legenda havia sido cassado. Os candidatos comunistas de São Paulo foram buscar abrigo no Partido Social Trabalhista (PST).

“A campanha dela foi com caixotinho, muro, amigos e quejandos”, rememorou Irene. Amigos para viralizar a campanha de Elisa no boca-a-boca, muro para pintar o nome da candidata e caixotinho para ela subir e discursar, com uma presença que chamava a atenção. “Mamãe era uma figura fulminante. Ela tinha o cabelo vermelho e era todo vermelha. Tinha uma presença que era difícil não marcar. Difícil, mesmo”, afirmou Fanny. A campanha deu certo. Contados os votos, o PST conquistou 15 das 45 cadeiras da Câmara nas eleições de 9 de novembro de 1947. Entre os eleitos estava Elisa, com 2.940 votos.

O mandato da primeira vereadora de São Paulo terminou antes de começar, às 17 horas de 31 de dezembro, na véspera da posse da nova legislatura. Foi nessa hora que um telegrama do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) chegou à sede da Câmara, no Palacete Prates, informando que o Tribunal havia declarado inexistentes os registros de todos os candidatos do PST no Estado. No dia seguinte, Elisa e outros três vereadores cassados se juntaram a uma centena de pessoas que se reuniram diante do Prates para protestar contra a cassação de seus mandatos. A multidão tentou invadir a Casa, mas foi impedida. Acabava ali a atuação de Elisa na política pública.

O papel pioneiro de Elisa na história do Legislativo só se tornou oficial em 2013, pela Resolução 13/2013, do vereador Orlando Silva (PCdoB), que incluiu nos anais da CMSP os nomes dos 15 vereadores comunistas injustamente cassados em 1947. No mesmo ano, o reconhecimento de Elisa como vereadora foi reforçado pela Resolução 20/2013, assinada por Orlando Silva e outros vereadores, que garantiu a restituição simbólica dos mandatos de 42 vereadores cassados por ações autoritárias entre 1937 e 1969.

Psicóloga e pedagoga, sem diploma

Elisa tinha pouca educação formal: apenas um curso profissionalizante de confecção de flores artificiais, para serem usadas como acessórios de roupas femininas. Não precisou de mais. Autodidata, aprendeu a buscar por conta própria os conhecimentos necessários para atuar onde precisassem dela. Provou isso ao assumir o cargo de administradora-geral da Organização Feminina Israelita de Assistência Social (Ofidas) e abraçar a tarefa que vinha junto com o cargo: atender judeus que chegavam ao Brasil vítimas de perseguição em seus países de origem. Podiam ser sobreviventes do Holocausto, judeus egípcios expulsos pelo presidente Gamal Abdel Nasser ou fugitivos de países árabes. Tinham em comum o desespero dos traumas e a necessidade de se adaptar a um país estranho. Para atendê-los, Elisa teve de se tornar psicóloga por conta própria.

“Pedagoga e psicóloga (embora nunca tivesse posto os pés em uma faculdade), foram inúmeras as pessoas totalmente desesperadas e deprimidas que devem seu renascimento a ela”, afirma o engenheiro Marcos Ajzenberg, vice-presidente do Instituto Cultural Israelita Brasileiro, no livro Vanguarda Pedagógica: o Legado do Ginásio Israelita Brasileiro Scholem Aleichem (Lettera.doc, 2008). Segundo ele, Elisa era “dessas figuras que, como cometas, perpassam pela vida das pessoas, deixando em cada um de nós um rastro de luz”.

Foi uma missão dada pelo Partido que permitiu a Elisa realizar a obra pela qual mais é lembrada: ter dirigido os anos iniciais da escola Scholem Aleichem, que funcionou entre 1949 e 1981 no Bom Retiro. A escola era fruto de um projeto da Associação Cultural Judaica (Icuf, sigla para as palavras em iídiche Idisher Cultur Farband), uma rede internacional de judeus de esquerda, em que o Partido Comunista era uma forte influência, e por isso conseguiu indicar o nome de Elisa como diretora.

A escola buscava “a disseminação dos ideais antifascistas e progressistas no cenário social brasileiro, por meio de uma educação pluralista e inovadora”, conforme a introdução do livro Vanguarda Pedagógica. A jornalista Cecília Luedemann, que estudou no Scholem, lembra que o colégio manteve essa tradição até o fim. “Durante a ditadura, o Scholem dava emprego a professores que não conseguiam mais dar aulas porque haviam sido presos pelo governo. Era uma escola acolhedora”, diz.

Luedemann explica que não havia qualquer contradição no fato de o Partido Comunista ter indicado para a direção da escola alguém sem educação normal. O Scholem buscava criar uma nova pedagogia, em que “não cabiam normas autoritárias, como exigir um diploma da diretora”. Nessa busca por uma educação diferente de tudo o que se fazia na época, a ex-vereadora teve um papel central.

No período em que dirigiu a Scholem, entre 1958 e 1962, Elisa transformou a escola num laboratório de experimentação pedagógica. Deu certo. A instituição de ensino “transformou-se rapidamente na melhor escola da comunidade e numa das melhores da cidade de São Paulo”, conta Ajzenberg no mesmo livro. Vários ex-alunos da Scholem conseguiram entrar nos ginásios públicos do Estado, os mais concorridos da época.

A jornalista analisou as anotações feitas por Elisa em livros do educador russo Anton Makarenko e menciona uma frase grifada pela diretora que ajuda a entender o modo como enxergava o papel do educador: “Não temer a vida e admirar o valor de todas as coisas do mundo”. Outros ex-alunos da Scholem não se esquecem da antiga diretora. “Elisa me fez gente. Tudo o que sei hoje e a liberdade mental que tenho aprendi com ela”, conta a professora aposentada Martha Kleiner, de 76 anos. “Sou pedagoga formada pela USP e tenho que dizer que minha mãe sacava muito mais de educação do que eu”, afirma Fanny.

Até o fim

Mesmo adoecida com um câncer de ovário, Elisa trabalhou na direção da Scholem até poucos dias antes de sua morte, em 4 de janeiro de 1963. “Mais de 3 mil pessoas encheram o Cemitério Israelita do Butantã. O enterro dela foi um ato político”, diz Irene.

Antes de partir, Elisa havia deixado uma ordem: que o discurso de seu funeral fosse feito pelo dramaturgo Maurício Segall, militante recrutado por ela nos tempos de Ofidas, que na época estava rompido com o Partido Comunista. Convidá-lo a discursar em seu enterro foi o jeito que Elisa encontrou para reaproximá-lo da militância. Elisa, que não temeu a vida, usou a morte para resgatar um companheiro perdido.

Falecida numa sexta-feira, Elisa só foi enterrada dois dias depois, em obediência ao sabá (descanso religioso prescrito aos sábados pela lei de Moisés). Pela tradição judaica, gente como Elisa não poderia morrer em outro dia. A filha Fanny explicou: “Dizem que o judeu justo morre numa sexta, para ser velado por mais tempo”.

Com informações da Revista Apartes