O que a HBO não te contou: Cuba tratou 21 mil “crianças de Chernobyl”

“Posso dizer sem exageros, que para nós, Cuba tem sido a salvação”. A frase é de Natasha Salimova, em 1999, em um artigo da agência AFP. O filho de Salimova é portador de paralisia cerebral e foi uma das crianças que participou do programa “Niños de Chernobyl” (Crianças de Chernobyl), oferecido pelo governo da ilha.

Por Fernanda Forgerini

Fidel Castro

 De 1990 a 2011, a cidade balnearia de Tarará (a 27 km de Havana) recebeu 21.874 ucranianos, russos e bielorrussos que tiveram contato com a radiação emitida após a explosão do reator quatro da Usina Nuclear de Chernobyl. O programa foi desenvolvido para dar suporte médico, psicológico e social aos pacientes e seus acompanhantes.

Em 1989, três anos depois do desastre, autoridades da Ucrânia fizeram um chamado por ajuda humanitária, em especial às crianças que haviam sido afetadas pela radioatividade e que estavam sem o tratamento adequado. Cuba foi o único país que respondeu ao pedido e realizou, em conjunto com a Ucrânia, o programa de acolhimento na ilha.

No dia 29 de março de 1990, 139 crianças desembarcaram no território cubano. Recebidas por Fidel Castro, foram encaminhadas aos hospitais pediatras Juan Manuel Márquez, William Soler e o Instituto de Hematologia do país.

A equipe de médicos e enfermeiros cubanos que participava do programa foi dividida em quatro grupos: o primeiro, registrava os casos mais graves, que eram levados diretamente aos hospitais; segundo, analisava o impacto psicológico nas crianças. O terceiro e quarto atendiam crianças sem sintomas “complexos”.

O tempo de permanência no país era determinado conforme a gravidade. As crianças com quadro mais grave poderiam ficar por meses na ilha, enquanto outros pacientes permaneciam de 45 a 60 dias. Julio Medina, médico e coordenador do programa, disse ao site Cubadebate que alguns pacientes eram portadores de “mais de uma doença crônica” e de transtornos psicológicos.

Muitas crianças que tiveram contato com a radiação desenvolveram algum tipo de câncer: maioria teve na tiroide e leucemia. Outras tinham atrofia muscular, problemas de pele e intestinal. Os médicos avaliaram também que a grande maioria que chegou em Cuba tinha algum tipo de estresse pós-traumático.

A história do programa foi retratada de forma indireta no filme O Tradutor. A produção, que é estrelada pelo ator brasileiro Rodrigo Santoro, conta a história de um professor universitário especializado em literatura russa que é convocado para trabalhar como tradutor das crianças que estão internadas. Santoro no filme interpreta Malin, que na vida real se chama Manuel Barriuso Andino e é pai dos diretores do filme (Rodrigo e Sebastián Bariusso). Os diretores afirmaram ao jornal Estado de S.Paulo, em abril, que o sistema de saúde cubano sempre foi “reputado como um dos melhores do mundo”.

Projetos culturais

Tarará, a região que recebeu as crianças de Chernobyl, é banhada pelo mar azul caribenho e tem palmeiras espalhadas pela areia fina das praias. O local foi utilizado pelos médicos para ajudar no processo de tratamento. Era comum ver crianças deitadas na areia tomando sol e mergulhando no mar. As duas ações tinham um papel importante: junto a medicamentos específicos, ajudavam na pigmentação da pele dos enfermos e no crescimento dos cabelos.

O Ministério da Cultura organizava eventos que as crianças do programa pudessem participar. Havia festas culturais, jogos e excursões. Eram realizadas também festas comemorativas quando as meninas do programa completavam 15 anos de idade – uma tradição das famílias latino-americanas.

Román Gerus é ucraniano e fez parte do Crianças de Chernobyl. Ele foi inscrito no programa quando manchas brancas apareceram por seu corpo em consequência do contato com a radiação. Gerus realizou três viagens a Cuba: a primeira delas foi quando tinha 12 anos de idade. Em junho, à BBC News, afirmou que estar em Tarará não era como estar “em um hospital”, pois os “doentes ali passavam bem”.

Na primeira viagem, Gerus permaneceu por seis meses na ilha. Na segunda vez, passou três meses em tratamento. Aos 15 anos, retornou e ficou por mais 45 dias. O ucraniano disse que nenhuma das vezes era igual em Cuba, mas que desfrutou as três vezes. “É algo que recordo com carinho. Quero regressar a Cuba com a minha família para mostrar-lhes a ilha”, afirmou.

Diferentemente de Gerus, Aleksander Savchenko também foi uma das crianças do programa. No entanto, ele não voltou à Ucrânia após o tratamento: Savchenko permanece em Cuba até hoje. No país, estudou medicina e se casou.

Nenhuma dessas histórias foi contada pela série ‘Chernobyl’, da HBO, lançada em maio. A produção teve cinco episódios que contaram os desdobramentos que se sucederam após a explosão nuclear – mas, para críticos, ela o fez de maneira “romantizada”.

Alguns sobreviventes afirmaram à agência Reuters que as pessoas que trabalharam na usina não foram tão “passivas" como foi exposto na série. Sergii Parashyn era o presidente do Comitê do Partido Comunista na usina nuclear à época da explosão e disse à agência que a interpretação de Paul Ritter como Anatoly Dyatlov, que era vice engenheiro chefe de Chernobyl, foi retratada de forma errada. Para ele, Dyatlov não se comportou de “maneira terrível” com as pessoas em volta, como a série mostrou.

Relações pessoais

María Nilda Báez era uma das tradutoras que auxiliava os médicos ao se comunicar com as crianças. Ela e mais outros profissionais eram escalados para trabalhar em diferentes setores do hospital. Nilda, por exemplo, começou na ala de fisioterapia e revezava o turno durante o dia e a noite.

A tradutora disse ao Cubadebate que a relação com as crianças ao longo dos anos foi se tornando “familiar”. Em especial, com um ucraniano que foi diagnosticado com paralisia cerebral. Mesmo já de volta à Ucrânia, o menino manteve contato com a tradutora, que o visitou em 2011. Eles ainda se falam e compartilham fotos de suas vidas.

Oswaldo Cruz era professor de língua russa e fazia a função de tradutor no programa, onde permaneceu pelos 20 anos que durou. Ele era um dos cubanos que, em 1998, para continuar atendendo os doentes que não conseguiam ir para a ilha, participou de um programa médico similar na Crimeia. A parceria durou até 2011. Segundo o Cubadebate, essa medida ajudou o sistema de saúde da Ucrânia a tratar de modo eficaz a população que teve contato radioativo.