Quatro documentários para entender o golpe de 2016 

Produzido pela Netflix, Democracia em Vertigem teve sua estreia internacional em 19 de junho. Aguardado pelo público, foi apontado pelo site Indiewire como um dos favoritos para o Oscar de melhor documentário em 2020. O filme da cineasta Petra Costa integra a série de produções voltadas à turbulenta política nacional de anos recentes. São documentários que registram, condensam e expandem o antes, o durante e o depois do golpe que retirou Dilma Rousseff (PT) da Presidência em 2016.

Dilma

Como discurso, os filmes tomam parte nas disputas políticas ainda não encerradas em torno da deposição de Dilma. O site Nexo listou quatro filmes que retratam o golpe e conversou com especialistas sobre a construção, a visão e as escolhas de cada documentário. Para eles, os filmes permitem um deslocamento de imagens oficiais e também uma leitura distinta ou mais atenta dessas imagens. Além disso, possibilitam o acesso a imagens raras, íntimas e de bastidores.

Democracia em Vertigem (2019), de Petra Costa


 

Embora centrado no golpe, o documentário faz um retrato político do Brasil para além do processo de afastamento da ex-presidenta. A maior parte das cenas se passa entre as manifestações de 2013 e a posse de Jair Bolsonaro em 2019. Mas a abrangência histórica do filme é maior – parte da primeira eleição de Lula, em 2002, e conta com imagens, sobretudo do arquivo familiar de Petra, de períodos como a ditadura militar (1964-1985) e a construção de Brasília.

Do ponto de vista das imagens, o filme mistura material inédito e não inédito. Há as cenas oficiais da posse de Dilma, em que a diretora analisa a proximidade dos corpos do então presidente, Luiz Inácio Lula da Silva, que deixava o cargo, e de sua esposa Marisa Letícia, lado a lado. Enquanto isso, o então vice Michel Temer caminhava afastado. Petra utiliza também as cenas registradas por Ricardo Stuckert, fotógrafo oficial da Presidência no governo Lula e que o acompanhou até sua prisão, o que traz uma camada fundamental para o filme de intimidade com Lula.

Ao longo de três anos, Petra entrevistou dezenas de políticos de diferentes matizes ideológicas. Há uma cena em que o hoje presidente Jair Bolsonaro mostra seu gabinete de deputado federal e os quadros que possuía dos generais do governo militar. Entre os registros inéditos, Lula e Dilma assistem juntos à votação em que os deputados aceitaram o processo de impeachment, em abril de 2016, os pertences da ex-presidente são retirados do Palácio da Alvorada e Dilma fala à diretora em seu apartamento em Porto Alegre após deixar a Presidência.

Petra deixa claro seu posicionamento à esquerda e seu entendimento do impeachment como golpe. Faz também algumas críticas ao PT a partir de sua chegada ao poder, em especial às alianças com partidos como o PMDB (atual MDB). A diretora se insere na trama a partir da narração em off, em que fala sobre sua família e sua vivência pessoal, misturando a história de vida à da política brasileira a partir da redemocratização. Para isso utiliza-se também de imagens de seu arquivo pessoal, como da primeira eleição em que votou para presidente e da comemoração da vitória de Lula nas ruas em 2002.

O Processo (2018), de Maria Augusta Ramos


 

O documentário é mais focado na dinâmica jurídica e política do próprio processo de impeachment, que foi acompanhado de dentro por Maria Augusta Ramos resultando em cerca de 450 horas de material bruto. O filme alterna, basicamente, entre cenas captadas durante as sessões do processo dentro do Congresso e bastidores da defesa de Dilma, formada por José Eduardo Cardozo, Gleisi Hoffmann e Lindbergh Farias, personagens que assumem protagonismo na narrativa.

Questionada pela Deutsche Welle sobre essa abordagem, a diretora respondeu: “Não é que seja a perspectiva da defesa: acompanho muito mais os bastidores da defesa porque a defesa me deu esse acesso. A oposição não me deu esse acesso. Se tivesse dado, eu certamente teria filmado mais”. Sem entrevistas ou narração, o filme é um documentário de observação da diretora, que não se coloca de maneira explícita nem interage com seus personagens. A câmera assume suposta invisibilidade.

O documentário traz algumas imagens panorâmicas dos manifestantes pró e contra o golpe posicionados do lado de fora do Congresso em Brasília. Para o documentarista e crítico Eduardo Escorel, “ao restringir o espaço principal do filme à sede do Senado Federal, onde transcorrem as etapas decisivas do processo de impeachment”, Maria Augusta “exclui a participação da própria Dilma que, isolada nesse período no Palácio da Alvorada, é reduzida à condição de figurante dos procedimentos legais que levaram, primeiro, ao seu afastamento da Presidência e, depois, à cassação do seu mandato”.

Em sua crítica, Escorel enfatiza não só a ausência de Dilma como de Lula, “figurante ilustre, de presença ainda mais fugaz”. A diretora não teria pedido acesso a Lula pelo fato de o filme se passar em Brasília e ser focado “no processo jurídico-político que acontece fundamentalmente no Senado e do qual ele não participou diretamente”. Quanto a Dilma, a diretora obteve acesso a ela no período em que estava afastada da Presidência, mas não há cenas desses encontros no filme.

Excelentíssimos (2018), de Douglas Duarte


 

Assim como Petra e Maria Augusta, Duarte obteve autorização para acompanhar e gravar o cotidiano do Congresso. “Já com as filmagens encerradas, sempre me pareceu que faltava parte da história que havíamos filmado dentro desse prédio”, diz o diretor na narração em off que abre o filme.

Diferentemente de Democracia em Vertigem, a narração do diretor não assume um ponto de vista pessoal e desaparece em vários momentos ao longo do filme. Para compreender o que ocorreu em 2016, o filme retrocede até 2014, quando Dilma foi reeleita por uma pequena margem de diferença no segundo turno. O germe do golpe, segundo o filme, está no fato de a oposição, representada por Aécio Neves (PSDB), não ter aceitado o resultado.

O documentário acompanha reuniões, sessões do Congresso, colhe depoimentos de parlamentares e traz escutas telefônicas de membros do governo. Diferentemente de O Processo, o filme dedica mais tempo aos parlamentares do baixo clero.

O Muro (2017), de Lula Buarque de Hollanda


 

O filme surgiu da criação do “muro do impeachment”, em abril de 2016. A barreira metálica foi erguida em Brasília, na Esplanada dos Ministérios, para dividir os manifestantes de direita e esquerda que ali se espalharam durante os meses em que se estendeu o processo. “Ver Brasília, a capital utópica, aquele lugar específico imaginado para agregar, com um muro que dividia famílias, era a imagem-limite de nossa impossibilidade de conversar. E não existe democracia sem diálogo”, disse o diretor.

O espaço principal passa a ser não o interior do Congresso, mas o lado de fora, alcançando também outros lugares do Brasil e do mundo. O diretor entrevista manifestantes de ambos os lados desse muro, deixando seu depoimento em off enquanto a imagem os posiciona em pé, em silêncio, com seus adereços, bandeiras e slogans, posando para a câmera. Ouve ainda cientistas políticos, historiadores e filósofos.

Também há planos mais gerais dos protestos e diversas imagens em detalhe do próprio muro. O filme é o único dos quatro a extrapolar o contexto nacional para mostrar outros “muros”, físicos ou não: Berlim, a fronteira entre Estados Unidos e México e a barreira construída em volta de territórios palestinos por Israel. O cineasta documenta os diferentes lados de cada conflito. Investiga menos o processo do impeachment em si e mais a polarização política criada em torno dele.

O que une e o que separa os filmes

“O audiovisual participa diretamente, o tempo todo, da disputa e da construção das narrativas históricas, que são múltiplas”, diz Reinaldo Cardenuto, professor da Universidade Federal Fluminense. “Essa escrita da história incide sobre o tempo presente. Se o cinema brasileiro está olhando, hoje, para um evento que aconteceu em 2016 e criando versões não hegemônicas sobre ele, certamente essas leituras terão consequências para o ano de 2019 e além, uma vez que agentes ainda estão disputando essas narrativas.”

Segundo Cardenuto, outro momento da história nacional em que o cinema tomou parte nessa disputa de maneira marcante e ágil foi durante as greves do ABC Paulista, no final da década de 1970. Os documentários sobre a mobilização dos metalúrgicos se contrapunham, disputavam e refutavam a versão apresentada pela televisão.

Menos pronunciada em O Muro, a discussão sobre o afastamento de Dilma configurar um golpe aparece em todos os filmes. Cada documentário se “interrompe” em pontos distintos de uma narrativa que ainda se desenrola: Democracia em Vertigem vai até a posse de Bolsonaro e a nomeação de Sergio Moro para ministro da Justiça em 2019; O Processo, por meio da inserção de uma cartela de texto pouco antes de o filme ser lançado, vai até a prisão de Lula em 2018; Excelentíssimos também chega até a prisão de Lula; e O Muro comenta as políticas do início do governo de Michel Temer, em 2016, e sua reflexão sobre o muro da Esplanada aponta para um futuro dividido.

“O distanciamento temporal e contextual criado pela montagem permite um olhar menos colado ao presente das narrativas cotidianas, da urgência das investigações e ações. Por outro lado, a distância ainda não me parece ser suficientemente grande para permitir um olhar histórico mais aprofundado sobre todo esse processo”, diz a crítica e pesquisadora Lúcia Ramos Monteiro.

Com pouco destaque, a figura do presidente Jair Bolsonaro já se enuncia em alguns dos filmes. “Ele aparece como consequência de todo o processo, mas não é um agente importante [nas narrativas]. Isso é curioso”, diz Patrícia Machado, professora da PUC-Rio.

Para a professora Andréa França, também da PUC-Rio, os documentários expõem a engrenagem política, jurídica e midiática do país: “As imagens da degradação institucional, da brutalização dos conflitos sociais, do esgotamento das esquerdas e dos atores políticos estão claras nesses filmes”. Exceto em O Processo, os documentários fazem uso de trilhas sonoras que criam um efeito de suspense e intensificam o significado das imagens.

Patrícia Machado propõe refletir sobre os diferentes modelos adotados pelos filmes à luz da história do documentário no Brasil. Ela lembra que, nos anos 1960, predomina a narração em off chamada de “voz de Deus”, ou “voz do saber”, que faz, de fora, uma análise da realidade do Brasil, trazendo dados e se situando em relação a um outro – pessoas de outras classes sociais. Surgem, então, filmes que começam a praticar o cinema de observação, que rompem paulatinamente com o modelo anterior. A narração em primeira pessoa chega mais tarde – e ganha força no cinema contemporâneo brasileiro.

Da Redação, com informações do site Nexo