Fernando Haddad: o caso The Intercept e a liberdade de imprensa

A imprensa brasileira é realmente a favor da liberdade de imprensa? Há boas razões para duvidar. O caso The Intercept, por duas graves circunstâncias, levanta dúvidas sobre a questão.

Por Fernando Haddad, na Folha de S.Paulo

Moro

A primeira, mais antiga. A Associação Nacional de Jornais (ANJ) entrou com uma ação direta de inconstitucionalidade (ADI 5613) junto ao STF em que pede algo surpreendente. O artigo 222 da Constituição estabelece que a propriedade de empresa jornalística e de radiodifusão é privativa de brasileiros que deverão deter um mínimo de 70% do capital da empresa e exercerão obrigatoriamente a gestão das atividades e a responsabilidade editorial.

A ANJ pretende que os efeitos deste dispositivo sejam estendidos à internet e justifica: “Houve uma opção constitucional por estabelecer uma espécie de alinhamento societário e editorial com vista à formação da Opinião Pública nacional”. É possível especular sobre o que a ANJ entende por isso, mas, nas condições locais, a afirmação mais parece um chiste freudiano.

Não há nada mais uniforme no Brasil do que a linha editorial dos jornais. Em momentos decisivos, seus proprietários unem-se numa só voz “com vistas à formação da opinião pública”.

O que pretende a ANJ? Que sites de notícias progressistas como The Intercept Brasil, El Pais Brasil, etc. saiam do ar? Que não possam utilizar o domínio “.com.br”? La Repubblica ou Le Monde não poderiam publicar notícias sobre o Brasil em português? O tradutor Google seria desabilitado?

A pretensão é tecnologicamente extravagante, mas reveladora de uma visão política nada moderna. Parece desconhecer inclusive que, em tempos de big tech, o que conta não é apenas a notícia, falsa ou não, mas seu impulsionamento, que se dá, lícita ou ilicitamente, pela força do dinheiro e do poder de Estado no “black mirror” da internet.

Nesse admirável mundo novo, a presença do The Intercept e de Glenn Greenwald entre nós é uma felicidade e fonte de inspiração para novas formas de cooperação entre jornalistas. O que me leva a uma segunda circunstância. Greenwald vem sendo covardemente atacado pelo presidente da República, por seu filho senador e pelo ministro da Justiça sem que a imprensa local se solidarize com ele na proporção exigida, muito pelo contrário.

A reputação internacional de Moro como juiz está comprometida, mas isso não lhe dá o direito de usar seu poder como ministro para prejudicar quem cumpre seu dever. Faria melhor se tomasse a conduta profissional de Greenwald como modelo. Os jornais locais, se defenderem a liberdade e integridade de Greenwald, poderiam ajudá-lo nesta tarefa.

* Fernando Haddad, professor universitário, foi ministro da Educação e prefeito de São Paulo