Uma foto que joga contra a Seleção feminina de futebol  

Machismo, discriminação social e exploração sexual da imagem da mulher marca a trajetória do futebol feminino.

Por Osvaldo Bertolino

Seleção feminina

A bela apresentação da Seleção Brasileira de futebol feminino, que, mesmo sem a melhor jogadora do mundo, Marta, venceu a Seleção da Jamaica por 3 a 0 no domingo (9) no Stade des Alpes (França), confirma que essa modalidade esportiva só não tem mais projeção por questões como machismo e outros preconceitos sociais. Algo que vem da história sobretudo de sociedades marcadas por processos obscurantistas, como a brasileira, que deixaram legados de difícil remoção. Talvez poucos países do mundo ostentem tantas marcas da herança pré-Revolução Francesa como o Brasil.

Soma-se a isso o incentivo midiático à sexualização da mulher como uma espécie de condição para o seu êxito em qualquer atividade. Agora mesmo, a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) divulgou uma foto da Seleção com as jogadoras inexplicavelmente de pernas cruzadas; uma imagem das atletas “bem mocinhas”, ou “afrontosa”, como registrou a revista Capricho. Algo que lembra um triste momento, em 2001, quando a filosofia perna-de-pau da Federação Paulista de Futebol (FPF) organizou um evento que previa o “embelezamento” das atletas como um dos “objetivos principais” para o “sucesso do torneio”.

— Desenvolver ações que enalteçam a beleza e a sensualidade da jogadora para atrair o público masculino — diz um dos pontos do projeto, de acordo com o jornal Folha de S. Paulo.

Em outro, relatou o jornal, o documento ressaltava a importância de “desenvolver ações de consultoria de imagem, estilo pessoal e treinamento de mídia com as jogadoras”. No discurso de lançamento da competição em um hotel de São Paulo, o próprio presidente da Federação, Eduardo José Farah, admitiu a “necessidade” de mudança do perfil das atletas da modalidade no Brasil.

— Temos que mostrar uma nova roupagem no futebol feminino, que está reprimido por causa do machismo. Temos que tentar unir a imagem do futebol à feminilidade — disse o dirigente.

— Vamos ter um campeonato tecnicamente bom e bonito – garantiu.

— Aqui, com cabelo raspado não joga. Está no regulamento — disse o vice-presidente da Federação e então dirigente do Santos Futebol Clube, Renato Duprat, o responsável pela organização do torneio paulista.

A decisão recebeu protestos. No “Painel do Leitor” do jornal Folha de S. Paulo do dia 23 de setembro de 2001, a leitora Neli Aparecida de Faria, da cidade de São Paulo, escreveu:

— Onde está o glorioso Ministério Público do Estado de São Paulo, que não tomou nenhuma atitude contra a preconceituosa Federação Paulista de Futebol no processo seletivo do Campeonato Paulista de Futebol Feminino? As feias e masculinizadas, segundo reportagens da Folha, são descartadas, mesmo que joguem futebol melhor do que as bonitas. E a beleza é critério subjetivo. Sempre admirei Clodoaldo e Renato Duprat, mas, se esse foi o critério usado para contratar jogadores para o Santos, isso explica a longa e torturante fila desse time. Não bastasse o preconceito reinante no mundo, agora a dona FPF usa critério estapafúrdio, que confronta com o bom futebol que todos anseiam para o campeonato feminino. OAB e MP, socorram as feias que jogam um bom futebol!

Sexualização preconceituosa

Um caso precedente ocorreu em 1994, com a jogadora Bel, que se destacava na Seleção, além do talento, pela beleza. Era tida como a musa da equipe. Risonha e falante, fitinha na cabeça, cabelos caprichosamente tratados, ela já tinha história para contar. Levada para a Itália por um empresário, jogou durante dois meses no Torino e tornou-se ainda mais famosa após posar nua para a revista Playboy.

Mesmo para promover o futebol masculino, a sexualização preconceituosa e vulgar da mulher é explorada. No dia da abertura da Copa de 2018, por exemplo, um site esportivo ilustrou a capa associando Seleção e patriotismo com uma foto de uma mulher ostentando um minúsculo short e o nome do país grafado na parte de trás. A opção editorial do site retrata bem esse conceito: futebol, nádegas e patriotismo seriam a mesma coisa. Aquela patriótica bunda brasileira descomunal, que para alguns trouxe desconforto moral, tinha na verdade um problema social; a Seleção — assim como traseiros de torcedoras — não é um monumento nacional.

Seja como for, o relevante é o descaso com o futebol feminino no chamado país do futebol. Essa indiferença, apesar de uma maior divulgação nos últimos tempos, decorre da falta de recursos. Ao contrário do futebol masculino — que tem como principais fontes de renda, pela ordem, a transmissão de jogos pela TV, a venda de jogadores entre os clubes e os patrocínios e publicidade —, o futebol feminino está muito distante da montanha de dinheiro investida nos campeonatos oficiais. Essa indiferença se explica pelo machismo.

O futebol feminino surgiu no Brasil no começo do século passado. Uma das versões sobre os primeiros chutes dados por mulheres em um jogo é a de uma partida que teria sido disputada entre catarinenses e paulistas, na cidade de São Paulo. Mas alguns pesquisadores garantem que ocorreram jogos de futebol feminino entre os anos de 1908 e 1909.

Outros dizem que o primeiro jogo feminino no Brasil foi disputado em 1913, entre times dos bairros da Cantareira e do Tremembé, em São Paulo. Teria sido um jogo beneficente para a construção de um hospital da Cruz Vermelha. Mas não se sabe se realmente eram mulheres jogando ou homens vestidos de mulheres. Pode ter sido também times mistos. Mas em uma coisa todos concordam: as primeiras mulheres que jogaram bola vieram de bairros populares, e eram vistas como “sem classe” e “grosseiras”.

Jogos beneficientes

A história do futebol feminino no Brasil sempre foi um mar de dúvidas. O Jornal do Brasil, edição do dia 29 de novembro de 1976, publicou matéria sugerindo que as primeiras partidas nas praias do Rio de Janeiro foram no Leblon, em dezembro de 1975. Disputados por jogadoras que em geral trabalhavam como empregadas domésticas, os jogos ocorriam sempre tarde da noite. Uma reportagem do jornal O Globo de 11 de abril de 1976 também noticiou a realização de jogos na praia do Leblon. A revista Veja abordou o futebol feminino em 1976, afirmando que ele teve o início marcado por jogos organizados entre diferentes boates gays, no final da década de 1970.

O Jornal do Brasil voltou ao assunto em 1996, afirmando que o futebol feminino esteve relacionado a peladas de rua e a jogos beneficentes. E citou como exemplo um jogo ocorrido em 1959 por atrizes do Teatro de Revista em pleno Estádio do Pacaembu, em São Paulo. Se de fato o jogo aconteceu, foi clandestino — um decreto-lei da década de 1940 proibiu a “prática de esportes incompatíveis com a natureza feminina”. O alvo eram os primeiros times de futebol formados por mulheres, que despertavam a indignação das famílias conservadoras. Filhas de “boa família” não deveriam se misturar com jogadoras de futebol.

A proibição tornou-se ainda mais rígida durante a ditadura militar. Em 1965, o Conselho Nacional de Desportos (CND) proibiu expressamente às mulheres, nos clubes, a prática de todos os tipos de futebol, além do polo, do rúgbi e do halterofilismo. A decisão só seria revogada em 1979. O Clube Federal, localizado no bairro do Leblon, na cidade do Rio de Janeiro, já organizava times femininos desde 1977, mas, com a revogação da proibição pelo CND, várias equipes e ligas se formaram. O futebol feminino começou a despontar para valer com a criação, em 1981, da Liga de Futebol de Praia Feminino. A partir daí, vários campeonatos foram patrocinados por empresas privadas.

O primeiro evento da Liga foi noticiado com diferentes denominações nos jornais: 1º Campeonato de Futebol de Praia Feminino do Rio de Janeiro, 1º Campeonato Feminino de Praia, 1º Torneio de Futebol de Praia do Rio de Janeiro e Campeonato Estadual Feminino de Futebol de Praia. A denominação da Liga também apresenta desencontros: alguns documentos afirmam que neste ano foi fundada a Liga de Futebol de Salão Feminino do Rio de Janeiro.

Mas a ascensão dessa modalidade esportiva começou mesmo com o time montado pelo Esporte Clube Radar. A equipe foi a primeira a excursionar pelos Estados Unidos e América do Sul. O clube, localizado em Copacabana, existia desde os anos 1930. Em meados dos anos 1960, na região acostumada aos acordes dissonantes da bossa nova surgiram várias bandas musicais que fizeram do bairro um dos epicentros do movimento beat da Zona Sul carioca. Clubes e boates se abriram para o som eletrificado das guitarras.

O futebol feminino no clube só apareceria no começo dos anos 1980. Em 1981, o Radar começou a montar um grupo de jogadoras que marcaria época, assim como o Santos de Pelé e o Botafogo de Garrincha. No dia 11 de abril de 1983, o Diário Oficial da União publicou a “Deliberação nº 01/83 do CND” dispondo sobre as normas básicas para a prática do futebol feminino. O documento dizia que o esporte poderia ser praticado nos Estados, nos municípios, no Distrito Federal e nos Territórios, sob a direção das federações e ligas de desporto comunitário, cabendo à CBF a direção em âmbito nacional.

Grande Juri

O debate sobre a viabilidade do futebol feminino se espalhou. No dia 21 de abril de 1983, o Jornal dos Sports publicou uma polêmica, intitulada “Grande Juri”, que teria a tarefa de julgar se era “válida” a participação feminina “no interior das quatro linhas de jogo”. Coordenado pelo sociólogo José Gilberto Caldas, o “Grande Júri” era composto por Clóvis Bornay, museólogo e carnavalesco famoso; Robson Prado, técnico de futebol; Letícia Alencar, educadora; Hildete Pereira, militante feminista; Sílvio César, cantor; Danilo Alvim, técnico de futebol; e Mauro Pompeu, médico. A jogadora Fia, do Bangu, participou como observadora.

O debate girou basicamente em torno dos preconceitos mais comuns que acompanham o futebol feminino: sexualidade e saúde. A feminista Hildete Pereira abriu a discussão dizendo que desconhecia as razões da proibição à prática do futebol pelas mulheres.

— Não sei exatamente se há tal proibição e, se ela existe, quais os motivos que estão por trás dela. E nós mulheres temos de estar atentas a tudo porque todas as vezes que se proíbe alguma coisa certamente estará comprovada a existência de discriminação – afirmou.

A desinformação sobre o assunto era total, fato explicado pelo regime militar iniciado em 1964 e que ainda estava em vigor.

O médico Mauro Pompeu mudou o rumo do debate ao afirmar que o futebol não era um esporte violento para as mulheres. Mas fez algumas ressalvas polêmicas.

— Entretanto, devo lembrar que a mulher, em virtude da sua constituição biológica, deve tomar certas precauções. Ela não pode, por exemplo, jogar futebol grávida. Não há médico que concorde em liberar a atleta nestas condições — disse.

Hildete Pereira rebateu as afirmações do médico dizendo que a gravidez é uma opção e que não era justo proibir ou condenar o futebol feminino porque a mulher “corre o risco” de ficar grávida.

O médico completou dizendo que o biotipo da mulher é diferente e por isso os treinamentos, o campo, a bola e o tempo de jogo deveriam ter outras especificações em relação ao futebol masculino. Mas enfatizou que não havia nenhuma restrição de ordem médica.

Clóvis Bornay, o museólogo e carnavalesco, disse que era “radicalmente contra”, mas mudara de ideia.

— Cheguei a discutir o assunto até em programas de rádio. Eu achava que não ficava bem, para as mulheres, a participação nos jogos de futebol. Entretanto, hoje já não penso assim — disse.

Segundo Bornay, o que fez ele mudar de opinião foi o belo futebol das meninas que jogavam pelo Prado Júnior Futebol Clube na praia do Leme, que ele presenciava todas as manhãs.

— Então, percebi que elas jogavam muito bem, e que o público gostava do espetáculo. Basta dizer que tem mais gente assistindo as meninas do que os rapazes. É o tal negócio: vi, gostei e acabei participando, de fora, é claro. Hoje eu faço parte do grupo como colaborador, e não abro mão do meu direito de torcer por elas, como torci domingo passado, no Mário Filho (Maracanã) — revelou.

Bornay referia-se ao jogo do Bangu com o Cruzeiro, de Belo Horizonte, presenciado por um grande número de torcedores.

Ele relatou que ficou aborrecido “com certos repórteres, de certas rádios”, porque não respeitaram as jogadoras.

— Acho que as meninas merecem o maior respeito do mundo. Esse negócio de ficar perguntando se as moças entraram em campo de sapatão, se estão usando sutiã, se deixam o pessoal entrar nos vestiários para vê-las nuas, é bobagem e falta de respeito. A imprensa deve apoiá-las respeitosamente. Afinal de contas, são atletas e estão representando um clube – protestou.

Bornay também disse que não concordava com os apelidos das jogadoras, muitas vezes associados ao nome de algum jogador famoso.

— A atleta deve ter o seu próprio nome. Nada de tentar compará-las aos homens, não é mesmo? – enfatizou.

Em seguida, ele exercitou seu talento humorístico, não sem deixar escapar uma tirada preconceituosa.

— Outra coisa que eu gostaria de dizer. O seio da mulher não é um empecilho para a prática do futebol. Vejam o caso dos homens, por exemplo. O baixo ventre, região masculina tão sensível quanto o seio feminino, não os impede de jogar futebol. Eles sabem como se proteger, e a mulher também sabe. Portanto, não há motivo para preocupações. Agora, preocupação deve haver com os transformistas.

Bornay explicou a preocupação.

— Com a perfeição que os travestis atingiram, é bem possível que os times entrem em campo anunciando mulheres e sejam travestis.

Até então, o debate era francamente favorável à aprovação do futebol feminino. Mas a educadora Letícia Alencar resolveu esquentar a polêmica. Para ela, a mulher não deveria se distanciar dos “valores antigos, válidos ainda hoje, e que encantam a mulher, sempre”. O que isso queria dizer? Ela explicou.

— Bem, eu acredito que, embora sendo a favor, o futebol feminino não deve ser incentivado pela escola, em grande escala. Devemos considerar o lado estético e o lado psicológico que, como sabemos, não é nada favorável.

Letícia Alencar também fez restrição à prática do futebol feminino invocando a menstruação.

— Pelo que eu saiba, o homem jogador não menstrua. Portanto, não tem problemas para jogar. E a mulher? Já pensaram, na hora do jogo, até mesmo por fatores psicológicos, a atleta fica menstruada? Como fazer?

A polêmica se instalou. O médico Mauro Pompeu teve a providencial ideia de pedir à jogadora Fia, que presenciava o debate, um esclarecimento sobre o assunto.

— Bem, já aconteceu. Eu fiquei menstruada antes de um jogo, mas tudo bem. Não me senti mal e joguei sem problemas.

No final do debate, o placar apresentou uma goleada: 7 a 0 a favor do futebol feminino, que já era uma realidade no cotidiano do calendário esportivo brasileiro.