Urariano Mota: Uma explicação para o dicionário amoroso do Recife

Mesmo em viagens para ficar apenas dois dias em outra cidade, eu sempre quis ir a restaurantes que servissem comida nordestina. Não era peitica, como falamos os recifenses, era um cordão ligado ao útero do Recife.

Por Urariano Mota*

Rua Aurora Recife

Havia sempre em todas as ruas de outros lugares uma falta, ora do cheiro de mar, ora do Capibaribe, ora do suco de graviola, de cajá, de feijão com charque e jerimum, das coisas mais caras que fazem uma identidade. Se estou em João Pessoa, cidade bonita e acolhedora, na praia de Tambaú descubro com exclamações o restaurante Gambrinus, mesmo nome do bar que existia na Marquês de Olinda, em nossa juventude. O Recife traz para mim a situação daquela música de Herivelto Martins, “Pensando em ti”. Escrevo agora vendo na memória o Rio Capibaribe, olhando-o de cima, tendo às margens as ruas do Sol e da Aurora.

O leitor já vê que o campo dos significados deste dicionário amoroso não foi consideravelmente apurado quanto à exatidão e clareza. Como pode o coração ser exato? Os significados neste livro vêm na nuvem da memória e do sentimento. Ou numa tentativa de ser mais preciso: a memória fala daquilo que a marcou. É sentimemória ou memória sentimentada. A clareza será percebida pela empatia que a expressão escrita desperte. Falo para humanos a humanidade do Recife. A clareza, se felicidade eu tiver, virá daí. A exatidão, se ocorrer, virá da verdade com que o dicionarista ousou imprimir nos verbetes, ou nas definições da alma da cidade que fala à semelhança de verbetes.

Os autores de dicionários falam sempre que, em relação à primeira edição, centenas de milhares de alterações foram introduzidas em todos os elementos componentes (com o perdão da rima, mas dicionarista raro sabe escrever) da edição anterior. Mas neste caso, em que a primeira edição se faz agora, as alterações se registram nas mudanças da cidade. Como no deslocamento do que antes era “o centro do Recife”, ou no sentido das translações do carnaval do Recife, que cresceu pela incorporação do carnaval de Olinda. Ou então no sonho do que foi e teria sido o Teatro Marrocos, lugar de perdição pelo que dele imaginavam os jovens que não tinham 18 anos ou dinheiro para vê-lo. Os olhos que recuperam o passado não se deleitam nele, porque seguem para a transformação da cidade além do espaço físico, porque atingem os gostos e costumes do Recife.

É claro, como bem acertam os grandes lexicógrafos, “não há como ser definitivo e muito menos exaustivo no mister da lexicografia”. Alertando para o mister aí, que não é o paroxítono “Mister” senhor, mas oxítono como clister, e com o sentido de ofício ou trabalho, anotamos que o dicionário de uma cidade jamais será definitivo ou exaustivo. Será de exaustão apenas para quem o faz. Isso porque a cidade é mais resistente a uma conformação de A até Z, que o léxico autoriza. Na cidade, mais rápido que na língua, tudo é mudança. Ou descaracterização, a depender do prefeito.

Por isso, “no que tange à datação do primeiro registro das palavras em português, pudemos antedatar, por vezes de séculos…”, não, este dicionarista aqui não é de séculos, apesar de, pelas barbas brancas, haver quem o chame de Papai Noel. Embora não venha das gerações anteriores à dos avós dos leitores, devo dizer que as referências à cidade se fazem com o que aprendi e me foi transmitido por gerações que vieram antes do meu nascimento. Isso quer dizer, para sair do analítico: este sotaque, este gosto, este amor pelas coisas pernambucanas, todas as características do que somos, vêm da história, que faz o nosso modo de ser até nas ações de que não nos damos conta. Essa defesa da amizade, esse conversar tocando nas pessoas, essa voz que fala ao telefone como se gritasse para ser ouvida do outro lado do mundo, esse afeto com cara de grossura no que é mais sensível que pétala de flor, esta vergonha ou pudor de falar “te amo bem mais que a mim mesmo”, não nasceram com a gente. Nasceram antes, foram construídas antes de Frei Caneca, foram sedimentadas pelos rebeldes que substituíram o vinho pela cachaça, desde o tempo em que Pernambuco era a maior dor de cabeça do império português.

Em resumo, enfim, para uma explicação deste dicionário amoroso: todos cantam a cidade onde nasceram. Eu canto o Recife.