Como os governos Temer e Bolsonaro afastaram o Fies dos mais pobres 

No papel – e durante as gestões dos ex-presidentes Lula e Dilma Roussefff –,o Fies (Financiamento Estudantil) tinha um objetivo claro: ajudar a financiar jovens pobres que se matriculavam em cursos privados de graduação. Mas na quinta-feira (7), ao abrir as inscrições para a leva de 2019, o programa parecia caminhar para a extinção. Além de estar mais enxuto, o Fies fechou cada vez menos contratos nos últimos dois anos – período que coincide com os governos Michel Temer e, agora, Jair Bolsonaro.

Programa estudantil existe desde 2001

O programa do Ministério da Educação (MEC) é buscado por estudantes como Gabriela Morais, de 22 anos, que pretende cursar medicina veterinária. Ela já tentou contratar o Fies duas vezes e não conseguiu por causa da renda. “Meu pai é professor da Secretaria de Educação. Eles consideram que os professores ganham bem, mas não consideram que eles são superendividados, têm salários congelados há anos”, conta a jovem. “Tem muita gente que precisa e não consegue o Fies. Eles precisavam rever o programa.”

Com dificuldades, a família da Gabriela tentou pagar a faculdade por três semestres, mas a jovem precisou trancar os estudos. “A faculdade é integral, não dava nem para trabalhar”, explica. Com o sonho adiado, Gabriela conta que fica sem saber os rumos que sua vida vai tomar. Agora, ela pretende achar um cursinho gratuito para estudar e tentar passar na Universidade de Brasília (UnB), instituição pública que não cobra mensalidade.

Quando Gabriela buscou o Fies, o auge do programa já havia passado. O número de contratos disparou durante o primeiro governo Dilma – de 76 mil em 2010 para 733 mil em 2014, com juros abaixo da inflação, obtenção do financiamento a qualquer momento do ano e prazo de quitação maior. Passado o boom, a oferta de financiamento recuou ao patamar do início da década – serão oferecidos apenas 100 mil contratos por ano até 2021. Mas a demanda não para de crescer.

Em 2010, 4,7 milhões de brasileiros estavam matriculados em cursos superiores privados. Nos oito anos seguintes, a população do país cresceu em 9,4%, enquanto a quantidade de alunos em faculdades privadas aumentou em 42%. Essa fatia representa quase 3/4 dos mais de 8 milhões de matriculados no ensino superior atualmente.

Conforme estudo da Associação Brasileira de Mantenedoras do Ensino Superior (Abmes) em parceria a empresa Educa Insights, 40% dos estudantes não têm condições de arcar sozinhos com as despesas da mensalidade nos cursos de graduação. Na opinião de 51% dos estudantes, as últimas mudanças no Fies dificultaram o acesso ao programa. Mais da metade dos estudantes nunca nem ouviu falar do P-Fies (quando o financiamento é feito por um banco privado).

Na família Chaves, o Fies foi um sucesso e um fracasso. Jaqueline, de 25 anos, conseguiu o Fies em 2012 e terminou seu curso de jornalismo, quatro anos depois, em uma instituição privada de Brasília. Hoje, paga prestações de um pouco mais de R$ 300 referentes ao financiamento com juros. Na época em que ela contratou o empréstimo, os juros eram subsidiados e as regras do programa eram bem mais flexíveis.

Já a irmã Julianie Chaves, de 20 anos, tentou contratar o Fies em 2017, após as principais alterações no programa, mas não teve sucesso. A estudante, então, optou por pagar a faculdade de fisioterapia. Ela ainda conseguiu uma bolsa parcial por ter tirado uma boa nota no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), mas ainda assim as mensalidades ultrapassam R$ 1.000.

Julianie sentou para conversar com o pai, que é servidor público, para ver se ele teria condições de arcar com os custos. “Ele fez as contas e disse que sim, mas estou vendo a hora que não vai dar mais”, lamenta. “O Fies, como está agora, não tem condições. Vejo pela minha turma mesmo – só tenho três colegas que conseguiram o Fies e ainda é preciso fazer um jogo de cintura”, critica a estudante.

Para o coordenador de Relações Internacionais da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Leandro Tessler, o modelo do programa passou a ser ineficiente. “O Fies se transformou em uma modalidade de financiamento como outra qualquer. Deixou de ter função social.” Atualmente, o Fies pode ser contratado por quem tirou nota igual ou superior a 450 pontos no Enem, e que não tenha zerado a redação.

As vagas ofertadas na modalidade governamental são limitadas e têm taxa de juros zero. Nesse caso, o interessado precisa ter renda familiar mensal per capita de até três salários mínimos. Para os estudantes que tenham renda entre três e cinco salários mínimos, existe a possibilidade de contratar a modalidade recente do P-Fies – com taxa de juros fixa de 6,5% ao ano.

“O governo federal quis aumentar a participação das instituições privadas, porque eles acreditam na corresponsabilidade”, explica o consultor legislativo na área de financiamento estudantil, Ricardo Martins. Ele atuou juntamente com o deputado Alex Canziani (PTB-PR), relator da Medida Provisória 785/17, que reformulou o Fies. Para Martins, as mudanças tornaram sustentável o programa. Mas ele próprio admite que essa modalidade não deslanchou.

As instituições de ensino superior privadas têm demonstrado preocupação com a baixa adesão ao programa. Membros da Abmes tentam audiência com Bolsonaro para debater melhorias no programa. Segundo o assessor jurídico da entidade, Bruno Coimbra, o formato não tem despertado o interesse dos estudantes.

“As mudanças, principalmente do P-Fies, ainda são muito tímidas. Acreditamos que o governo precisa criar mais vagas, e os bancos privados e de fomento, abraçar a causa”, disse Coimbra. Para ele, o Fies deve ser visto como um investimento em educação. “Tem caráter social e de incremento para economia. Defendemos uma estruturação responsável do programa. Também não nos interessa alunos inadimplentes.”

Sob o governo Dilma, as instituições privadas recebiam repasses do governo federal para bancar os alunos do Fies. O grupo Kroton-Anhanguera foi a empresa que mais recebeu pagamentos do governo federal em 2014. Foram repassados mais de R$ 2 bilhões para 12 mantenedoras do grupo.

Segundo Paulo Meyer, especialista do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), o programa tinha tantas facilidades que muitas instituições privadas incentivavam os estudantes a contratarem o financiamento mesmo podendo pagar a mensalidade. Por isso, o orçamento multiplicou e o número de contratos nesse período também.

Mas a média anual de aumento de estudantes na rede privada passou de 5%, entre 2003 e 2009 para 3% a partir de 2010. Já as mensalidades aumentaram desde 2011, em média, 2,9% ao ano, como apontaram dados elaborados pela CM Consultoria com base na Análise Setorial do Ensino Superior Privado da Hoper Educação. Assim, os gastos do governo federal saltaram 647% desde 2011, enquanto o número de contratos cresceu quase a metade, 374%. No período, foram R$ 24 bilhões de recursos do Tesouro e 1,2 milhão de novos contratos.

Modelo internacional

No novo formato do Fies, o estudante pode pagar o financiamento no futuro de acordo com a renda familiar. O desconto será feito direto em folha no caso dos recém-formados que tiverem emprego formal. Quem não estiver empregado, terá descontada apenas uma parcela mínima de mesmo valor cobrado durante o curso. Mas segundo Meyer, do Ipea, os estudantes ainda têm muito receio de firmar contratos, principalmente porque não entendem como o programa funciona.

No ano passado, o governo Temer pretendia incluir 310 mil novos alunos no Fies. De acordo com o Ministério da Educação, das 100 mil vagas ofertadas na modalidade governamental com taxa de juros zero, foram firmados 82 mil contratos. Já na modalidade denominada de P-Fies, mais de 2.500 contratos estão em andamento.

A estratégia do governo federal para o segmento inclui também o Programa Universidade para Todos (Prouni), que distribui bolsas em instituições particulares para estudantes de baixa renda. Desde 2005, já atendeu a mais de 2,4 milhões de estudantes, sendo 69% com bolsas integrais – o desempenho no Enem serve como um dos critérios de seleção.

Mais mudanças nas regras do Fies passaram a valer no início de 2018 para contratos novos. Os estudantes com financiamento em andamento poderão migrar aos poucos.
A principal alteração foi o fim da carência de 18 meses. O estudante deverá iniciar o pagamento no mês seguinte ao término do curso, desde que esteja empregado. O prazo máximo para pagamento será de 14 anos.

O dinheiro será descontado diretamente do salário, por meio do eSocial do INSS. Com isso, o governo federal espera a redução da inadimplência no cumprimento dos contratos, limitação do risco da União, melhora nas condições de financiamento e racionalização das amortizações. De acordo com o MEC, a taxa de inadimplência é de quase 50%. Mais de 450 mil ex-alunos na fase de amortização não estão em dia com o pagamento das parcelas.

Com informações da BBC News Brasil