As canções que abalam: o machismo nas letras de músicas

Não importa a época nem o estilo musical – violência doméstica, psicológica, assédio sexual, apologia ao estupro e silenciamento sempre fizeram parte de inúmeras canções brasileiras, das antigas marchinhas de carnaval ao funk de hoje em dia.

Por Nanci Alves

Míriam Hermeto (UFMG)

 Ouvir e cantar estas músicas, até há pouco tempo, eram ações comuns feitas até mesmo por muitas de nós, mulheres, que pouco questionávamos o conteúdo das letras, por mais machistas que fossem. Parece que tudo era mesmo naturalizado pela cultura patriarcal e machista herdada desde os tempos da colonização. Porém, com o crescimento do movimento feminista, em meados do século passado, esta história vem mudando.

Embora o número de composições só tenha aumentado, cantar a violência contra a mulher virou um ofensa e até mesmo crime, principalmente num país onde, de acordo com o 11º Anuário Brasileiro de Segurança Pública (FBSP, 2017) morrem, diariamente, 13 mulheres assassinadas por companheiros ou ex-companheiros, ou seja, uma a cada duas horas. Os dados mostram também que a cada 11 minutos uma menina/mulher é estuprada no Brasil – lembrando que este número pode ser bem maior, pois muitos casos não são registrados por medo ou constrangimento sofridos pela vítima.

Desvalorização da mulher

Colocar em letras de música a mulher neste lugar de submissão ou merecedoras de agressões, física e psicológica, é dar voz ao machismo (com valores, representações e práticas vigentes), que deveria ser questionado. De acordo com Míriam Hermeto, professora do curso de História da UFMG, “a canção popular pode ser pensada como uma produção cultural que não apenas veicula representações sociais, mas que as cria, as constrói – e nesse sentido, é também produtora da própria sociedade. Ao criar e veicular valores e práticas, ela não apenas representa parte do que está vigendo socialmente, como constrói ‘novos fazeres’”.

A partir desse pensamento e diante da realidade de produção de músicas machistas em todas os estilos (sertanejo, funk, rock, MPB, samba, pagode, rap, etc.), a grande questão é: até que ponto uma composição pode estimular mais violência?

O fato de cantar sem questionar o que está sendo dito já é um sério problema. Para a historiadora, “além de pensar que a canção popular pode ‘influenciar’ seus ouvintes – que são sujeitos ativos, e sempre têm responsabilidade sobre suas ações no mundo –, é interessante pensar em como ela pode naturalizar práticas culturais, atribuindo um valor positivo ou valorizando práticas antidemocráticas”, afirma.

Míriam Hermeto, ao destacar que a música popular é um produto cultural, que tem a dimensão artístico-cultural, política, estética e, claro, comercial, reforça que “uma vez em circulação, os produtos sociais devem ser criticados e devem ser parte do debate social”. Ela ressalta que, politicamente, a ação dos movimentos sociais e dos sujeitos políticos deve incorporar a crítica a esse viés de canções e músicas.

“A instituição da censura prévia, a meu ver, é um passo grande para o enterro da democracia. Os limites devem vir da sociedade, mesmo para os discursos de ódio. Uma vez denunciadas e julgadas – hoje, a legislação já nos permite essa forma de ação –, as canções e outros produtos culturais podem ser limitados”, defende Míriam Hermeto.

Para a historiadora, a escola é lugar privilegiado para o debate sobre a realidade social – por mais que movimentos políticos radicais tentem, hoje, cercear esse debate, seja coibindo a escola e os professores de fazê-lo, seja não permitindo o confronto de diferentes posições. “A escola deve ser lugar de debater o que os estudantes, os professores e a comunidade escolar produzem, ouvem, veem, consomem, creem. Só que isso deve ser feito a partir de duas bases fundamentais, que devem compor a escola como instituição social: a base ética, de respeito e legitimação do ‘outro’; e a base epistemológica, de tratamento adequado das temáticas, a partir das diferentes disciplinas/áreas do conhecimento”, afirma.

As sutilezas da violência

Em muitas músicas, antigas e atuais, o que vemos é muito sexismo e misoginia em vários tons de “amor” – uma verdadeira romantização da violência. A cantora, compositora e dançarina do Grupo Folclórico Aruanda, Ana Luísa Cosse, se diz indignada com essa cultura que agride e objetifica a mulher.

“É inquietante pensar na romantização de agressões, ciúmes, assédio, silenciamento e relacionamentos abusivos em letras de música. E o machismo não é só o que é explicito e revoltante – afinal, é muito comum cantarmos melodias sem nem prestar atenção no que diz a letra. Por isso é importante nos atentarmos a pequenos detalhes que às vezes nos passam despercebidos. O machismo sutil pode ser ainda mais problemático, porque parece normal e é facilmente aceito e, muitas vezes, defendido. Precisamos questionar e compreender o problema. Parar de consumir e reproduzir esses conteúdos, lutando para quebrar essa prática musical que reforça e estimula atitudes machistas na nossa sociedade”, afirma.

Ana Luísa diz que tem uma grande preocupação com a escolha de seu repertório. “Já cantei músicas com letras machistas sem nem perceber. Hoje minha consciência é outra, é uma desconstrução diária do machismo. Muitas dessas músicas não são mais cantadas nem pelos artistas que as compuseram. Os tempos são outros. Estamos nos reconstruindo. Às vezes me deparo querendo cantar uma música que gosto muito e que, de alguma forma, fez parte da minha formação e me dou conta de que não concordo com a mensagem que ela passa e decido não cantar, exatamente por não querer reproduzir determinados discursos”, conta.

Fonte: Revista Elas por Elas (Sinpro Minas)