Juliana Diniz: O decote da deputada

“Paulinha protagonizou uma polêmica por ter peitos, ou seja, por ser mulher num espaço de homens. Afirmou em entrevista: “mulheres estão na política e a sociedade tem que se acostumar com elas como são”. Gostem os recatados ou não, seus seios podem ser um troféu, mas um troféu que ela decidiu ressaltar, na própria posse, como deputada eleita, afirmando seu protagonismo com estilo particular”.

Por Juliana Diniz*

Deputada Paulinha

Na última sexta-feira tomaram posse os eleitos para o Legislativo. As cerimônias por todo país foram animadas por um caricato e previsível populismo eleitoral: fardas, bíblias e chapéus de cowboy puderam desfilar pelos parlamentos para deixar claro que nos próximos quatro anos não haverá espaço para metáforas. Não demorou para que colagens com fotos e memes dos deputados travestidos com seus símbolos tomassem as redes sociais para manifestações instantâneas de revolta: entre os escolhidos para o tribunal público, estava a deputada estadual Paulinha, a quinta mais votada em Santa Catarina e ex-prefeita do município de Bombinhas. Seu pecado? Um generoso decote, que deixava à mostra a silhueta dos seus seios, a visão potencializada pela cor vermelho-sangue que escolheu para vestir.

Paulinha não escapou das críticas que vieram de um espectro amplo: dos representantes do conservadorismo mais reacionário a vozes que gostariam de se definir como progressistas, defensoras da igualdade de gênero e da emancipação feminina. Entre seus conterrâneos, houve quem a acusasse de falta de elegância e recato. Os mais exaltados falaram em quebra do decoro desde a posse.

De forma involuntária, Paulinha precipitou um debate interessante sobre o papel que cabe à mulher na política e no espaço público. A persona provocante, incorporada numa cor simbolicamente associada à impureza e ao pecado, gerou tensão entre dois pontos aparamente inconciliáveis. Sua presença no Parlamento afirma um ideal de representatividade de gênero reconhecido socialmente como legítimo: sob esse olhar, Paulinha é uma das poucas mulheres que conseguiram chegar lá e um exemplo admirável. Ela está entre as cinco mulheres que tomaram posse na Assembleia Legislativa catarinense, o maior número na história do estado. Seus seios desnudos, contudo, transgridem o ideal de “recato”, “respeitabilidade” e “autocontenção” esperado das mulheres que se dispõem a ocupar o lugar que Paulinha conquistou pelo voto. Por isso, a mensagem subliminar da crítica expôs os limites de uma representação não acompanhada de mudança cultural efetiva: o assento de deputada não é reservado a qualquer mulher, mas àquelas que são reconhecidas como sérias pela sociedade.

Indecorosa, deselegante, despudorada: os adjetivos que usamos colocam em evidência determinados arquétipos que permeiam o imaginário coletivo. Há uma clara cisão na identidade feminina que remonta à narrativa bíblica, dois caminhos possíveis para a mulher: o da virgem-mãe e esposa, ideal do recato e do autosacrifício em prol da maternidade se contrapõe ao da mulher-pecado, tentação dos homens, feiticeira lasciva, prostituta entregue à experiência da luxúria. A mulher que assume o gozo do próprio corpo e se dedica a satisfazer seus desejos incorpora em sua escolha uma recusa intolerável de sua natureza, é causa de desassossego das instituições por negar o destino que lhe é reservado numa sociedade patriarcal.

A visão do corpo de Paulinha, farto em curvas e orgulhosamente exibido, convida a uma reflexão profunda sobre os papeis de gênero na política. Um feminismo míope veria em seu decote um triunfo da objetificação da mulher. Esse feminismo não se reconhece em figuras como as de Paulinha porque ainda pressupõe uma divisão entre corpo e espírito. Identificando no corpo a expressão do decaído, esse discurso remonta aos mitos que historicamente limitam as possibilidades de afirmação da subjetividade feminina. Uma alternativa mais interessante de interpretação é possível, e o exemplo da deputada se presta a isso. A mulher é desde sempre corpo e espírito, por isso a superação do problema da sub-representação passa, necessariamente, pela coragem de transgredir e tensionar a dicotomia entre mulher-santa e mulher-pecado, criando novas possibilidades de identidade feminina.

Paulinha protagonizou uma polêmica por ter peitos, ou seja, por ser mulher num espaço de homens. Afirmou em entrevista: “mulheres estão na política e a sociedade tem que se acostumar com elas como são”. Gostem os recatados ou não, seus seios podem ser um troféu, mas um troféu que ela decidiu ressaltar, na própria posse, como deputada eleita, afirmando seu protagonismo com estilo particular. Paulinha é, por isso, um triunfo para as mulheres, respeitáveis ou não: no último dia 1º de fevereiro, chegou à Assembleia para ser empossada como deputada e não para sentar no colo de ninguém.


*Juliana Diniz é Doutora em Direito e professora da UFC.

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