Um Jesuscristinho sertanejo

Por Joan Oliveira*

Presepio de Natal

Por volta do final de novembro até o início de dezembro nós começávamos os preparativos. Numa caixa de madeira ou num balde colocávamos a terra, molhávamos bem e plantávamos o arroz. Era a primeira tarefa, a fase preparatória para construirmos a nossa lapinha.

Quando o arroz germinasse, com dois ou três centímetros de altura, começaríamos a preparar tudo. Os tenros brotos seriam os primeiros enfeites, um capinzal imaginário a cercar tudo. Com talas de carnaúba armaríamos uma espécie de barraco, aquilo que imaginávamos ser uma estrebaria, coberta com palha. A manjedoura seria feita dos mesmos materiais.

Os animais eram poucos: pequenos bois e jumentinhos de barro, comprados na feira a um preço exorbitante para a nossa pobreza. Se déssemos sorte, conseguiríamos um galo de barro, com suas pernas de graveto, umas penas no rabo, pintado à moda carijó.

Os bichinhos nem sempre guardavam as proporções. Por vezes o jumento era grande demais, ou o galo era maior do que os bois. José e Maria eram de papel cartonado, normalmente cortados de algum calendário do ano que encerrava. Às vezes conseguíamos também uma gravura dos reis magos.

Mas o jesuscristinho não, esse era sempre um bonequinho de plástico, para cuja compra economizávamos tanto tempo. O bonequinho era feio, assexuado, de um plástico duro, com os olhos, a boca e o nariz pintados toscamente. E nu, de uma nudez miserável, que cobríamos com um paninho branco quando lhe colocávamos na manjedoura.

No topo do barraquinho pregávamos uma estrela prateada, de papelão, como a estrela que guiara os reis.
Nossa lapinha era de uma pobreza franciscana, uma miséria sertaneja. Era uma lapinha feita da pobreza daqueles ermos onde vivíamos. Não havia iluminação, nada. Era uma lapinha de meninos e meninas que apenas se iniciavam nos mistérios da fé.

Aquele bonequinho de plástico duro parecia muito mais com os anjinhos que morriam por ali em profusão. Acho que por essa época eu comecei a questionar a minha fé, por achar que no céu não haveria lugar para tanta criança que morria ali, de fome, de disenteria, de sarampo, de crupe, de doença tanta e de tanta, mas tanta fome, que ali era ela o artigo mais em abundância.

Conhecíamos a história de Herodes, o rei mau que ordenou que matassem todos os meninos com menos de dois anos de idade. Ali onde vivíamos, a fome, rainha má, sozinha ou em companhia da sua consorte, a seca, não fazia distinção de gênero, e gostava de matar meninos e meninas, com menos ou com mais de dois anos.

Tantos anos passados, a fé partiu há muito, como há muito sumiram aquelas lapinhas sertanejas, outrora presentes em quase todas as casas. Mas quando vejo ainda os mesmos casebres pobres no sertão, quando vejo as mesmas crianças miseráveis esmolando pelas ruas da cidade, é impossível não pensar naquele jesuscristinho miserável das nossas lapinhas.

Sei agora, que já naquela época, a minha fé era uma espécie de esperança, uma esperança que tentei transformar em luta ao longo dessas décadas, para que, tal como aqueles grãos de arroz que semeávamos para enfeitar a nossa lapinha, germinasse um dia uma nova humanidade, um mundo novo, sem Herodes, sem fome, sem injustiça, sem seca. Um mundo novo onde não haja mais meninos famintos, pobres, esfarrapados, como aquele simbólico jesusinho de plástico que dormia imóvel na nossa miserável manjedoura.