O AI-5 na era de Aquário

Por Guerreiro Parmezan*

contracultura aI-5

Em 13 de dezembro de 1968 uma sufocante névoa de trevas cobriu o país. A reunião ministerial convocada pelo general presidente Costa e Silva, gravada e disponibilizada, ratificou, através de um (literalmente) teatro político, o mais terrível dos Atos Institucionais da Ditadura Militar brasileira: o famigerado AI-5 – manobra autoritária que legalizava ações de intensa violência na perspectiva da manutenção do regime. Foi o maior petardo tecnocrático da história nacional contra as liberdades civis e o Estado Democrático de Direito. Ao completar 50 anos, agora em 2018, proponho uma abordagem cultural deste triste episódio.
 
1968 não foi um ano qualquer. Talvez tenha sido o ápice das produções mundiais da contracultura. 1968 se forja em fenômenos demográficos, políticos e culturais tão marcantes e inimagináveis que se fossem previsíveis no pós-Guerra muito provavelmente as elites políticas – capitalista e comunista – o teriam impedido ainda no início da Guerra Fria através de aparatos ideológicos implacáveis. Quando veio a repressão – e esta veio através de blindados e colunas marciais – não foi a tempo de estancar todos os estilhaços que sobraram daquele formidável calendário e, por isso mesmo, muitos especialistas chamam 1968 de o “ano que não acabou”.

Por incrível que pareça, o advento do conflito ideológico entre EUA e URSS representou um profundo ganho de qualidade de vida para as populações dos dois blocos. Os investimentos em educação pública e saneamento básico, principalmente, são superotimizados e, pela primeira vez na história, surgirá uma geração de crianças (oriundas de camadas populares) que poderá planejar sua vida dentro de uma perspectiva de bem-estar social.  Em meados da década de 1960, essas crianças tornam-se os jovens que inundam as universidades. Some-se a tal consequência, no Ocidente muito mais, uma fantástica expansão da sociedade de consumo e a superdinamização da mídia, trazendo consigo o entretenimento, a moda e, principalmente, novos comportamentos.

Essa geração rapidamente começa a fazer história. Organizada em interesses de classe e inseridos no ambiente acadêmico – o lugar por excelência da informação e do debate – ela ‘se percebe’ muito diferente de seus pais e radicaliza outras noções identitárias através da música, do cinema, do teatro, dos ideais, das roupas, dos gestos, dos valores e até dos sonhos. Enfim, pais, professores e velhos líderes não só deixam de ser referência como passam a ser repudiados. Ser ‘jovem’, significa acima de tudo ser ‘rebelde’. E da academia, a rebeldia se irradia para outros polos sociais. De repente, todas as certezas são postas em cheque; todos os conceitos são questionáveis e os ventos da mudança parecem bem-vindos e necessários para o frescor de novos tempos – que muitos chamaram, à época, de Era de Aquário. A contracultura transborda da estética e, fatalmente, chega à política.

Se num primeiro momento a contracultura não provocou ruptura com o sistema – sim, tanto no capitalismo como no comunismo foram oferecidas formas, produtos e estéticas ‘jovens’ (o rock and roll foi a principal) – quando esta passou a se confundir com ‘atitude política’ tudo ficou bem mais complicado. Não bastava mais ser ou consumir algo ‘diferente’. Falo aqui não de uma, mas de muitas revoluções. Em Praga, Tchecoslováquia, uma jovem intelectualidade movida por radiamadores organizou um levante capaz de desafiar o Pacto de Varsóvia e o Império Soviético por ‘liberdade’; nos átrios, ruas e lares ianques, milhões de cidadãos pediam o fim da Guerra do Vietnã após as contra-ofensivas vietcongues, e organizavam campanhas de deserção; estudantes europeus passam a enquadrar embaixadas e universidades exigindo políticas pacifistas e incremento de gestões sociais nas empresas privadas; em Paris, os universitários se juntam a grandes sindicatos e colocam o governo De Gaulle de joelhos; no México, praças são tomadas também por jovens em busca de mudanças; o ativismo feminista ganha as ruas exigindo o direito ao prazer sexual sem culpa e sem maternidade; o ativismo gay se assume maduro o suficiente para reagir às violentas e sistemáticas repressões a seus guetos; e o assassinato de Martin Luther King é a tragédia que contempla a irreversibilidade das conquistas civis por parte da comunidade negra norte-americana.

E o Brasil também entrou na “Roda Viva"

Dentre todos os generais presidentes, Costa e Silva certamente foi o mais ausente. Bonachão, demonstrava mais preocupação com o desempenho do Fluminense do que com o conturbado – e bota conturbado nisso! – período o qual, em tese, deveria comandar.

No curso de 1968 a parte mais intelectual e esteticamente destacada da contracultura brasileira (acadêmicos, tropicalistas e músicos de festivais) se manifestava politicamente pelo mantra “abaixo a ditadura” e, depois da terem frustradas suas pretensões de poder devido aos evidentes sinais de manutenção dos militares no comando das Instituições, conservadores pareciam cada vez mais inclinados a se unirem ao coro pela redemocratização do país.

Da estética e da Universidade, o “abaixo a ditadura” passava a ecoar na classe média – estrato social fundamental para a organização de qualquer sistema de poder. Oficiais alinhados à linha-dura – seara militar radicalmente autoritária e paranoicamente antimarxista – inicia um processo de emparedamento de Costa e Silva: comunistas do sudeste asiático vencendo a maior máquina de guerra do Planeta? Degenerados sexuais e raciais obtendo nacos de inclusão?  Cabeludos maconheiros propondo uma sociedade anárquica? Artistas espinafrando valores morais, familiares e religiosos? Imberbes munidos de livros derrubando governos? Se algo não fosse feito o Brasil poderia ter o mesmo destino: a “desordem”, a “esculhambação”. Pouco a pouco o requentado discurso militar de “salvacionismo” passa a ressoar pelos bastidores e antessalas do poder na medida em que junto da contracultura (tão rejeitada pelo conservadorismo mais extremo), temos também o renascimento do movimento estudantil e sindical. 

O AI-5 estava em fase de gestação

Tudo leva a crer que mesmo diante da Passeata dos Cem Mil, Costa e Silva parecia procrastinar uma exigência dos quartéis, hesitando em carimbar uma pecha tão infame na própria biografia. Entretanto, se foi a recusa do Congresso Nacional em entregar a cabeça de Marcio Moreira Alves que o levou a encomendar o Ato, foi o editorial do jornal O Estado de S. Paulo que o fez assinar sem remorso. 

O “Instituições em Frangalhos” foi escrito em caráter pessoal por um jornal que até então era franco aliado da “Revolução”.  Uma crítica ácida e direta. Ele, um sujeito que sempre foi motivo de zombaria pelos parcos recursos intelectuais, era novamente, e agora na condição de presidente, chamado de incompetente e despreparado. As catilinárias de Júlio de Mesquita Filho não eram contra o Golpe, eram contra sua pessoa. Depois daquela sessão noturna e sinistra de 13 de dezembro de 1968, Costa e Silva queria ver se haveria alguém ousando atentar contra sua autoridade ou prestígio. O AI-5 estava decretado e iria durar por longos dez anos.

Termino este artigo reiterando que sem o clima da contracultura da época, não acredito que o parlamento brasileiro fosse corajoso o suficiente para rasgar a mordaça e afrouxar os grilhões – conduta à qual o Estadão reagirá desafiando publicamente o ‘entediado’ Costa e Silva. Também defendo que sem a mesma contracultura, inspirações e ações libertárias não teriam o peso que tiveram no acirramento da neurose conservadora pela manutenção da ordem.

50 anos depois temos novamente reações contra políticas de inclusão e cidadania a minorias. Rogo para que os estilhaços de 1968 que se fundamentaram em tantas conquistas históricas sejam suficientes para impedir que forças reacionárias nos imponham as mesmas tragédias da ditadura. Já basta uma meia dúzia de revisionistas querendo resgatar o AI-5 como algo ‘benéfico’ à nação. Que ainda nos cheguem hoje, ao menos, as brisas daquela era de Aquário.