Devoluções do BNDES são ilegais e provocam política fiscal equivocada

 Precisamos de uma agenda de desenvolvimento e isso vai demandar um BNDES com orientação muito bem planejada.

Por Arthur Koblitz*

BNDES

Noticia-se que o novo presidente do BNDES, Joaquim Levy, tem a missão de trazer para o Brasil mais dólares das instituições internacionais. O objetivo seria acelerar a devolução dos empréstimos feitos pelo Tesouro Nacional ao Banco de Desenvolvimento durante os governos petistas. É difícil acreditar que está se considerando destruir recursos em reais mobilizados para o investimento para substituí-los por captações em dólares sujeitas a variações cambiais. Para financiar o quê? Quem ficará com o risco?

A falta de sentido não é apenas econômica. As devoluções são ilegais também. É fácil entender porque uma apreciação estritamente literal a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) as veda. No seu artigo 37, inciso II, a LRF estabelece a vedação ao “recebimento antecipado de valores de empresa em que o Poder Público detenha, direta ou indiretamente, a maioria do capital social com direito a voto, salvo lucros e dividendos”. Como o Governo Federal detém a totalidade do capital social do BNDES e as devoluções tratam de antecipação de pagamento de empréstimos e não se enquadram, portanto, na categoria “antecipação de lucros ou dividendos”, não resta outra conclusão: o artigo 37 da LRF veda as devoluções.

Mas há quem diga que essa interpretação literal é destituída de fundamento interpretativo. Como analisar se essa interpretação literal está de acordo com o espírito, ou com a intenção do legislador? Sugiro analisarmos o artigo 36, que nunca teve suas consequências sob controvérsia, e do qual o artigo 37 é uma extensão.

O artigo 36 estabelece que “É proibida a operação de crédito entre uma instituição financeira estatal e o ente da Federação que a controle, na qualidade de beneficiário do empréstimo”. Todos, até agora, interpretaram esse artigo como vedando, por exemplo, a possibilidade de o BNDES realizar uma operação de concessão de crédito com o Governo Federal. Literalmente, é indiscutível também essa leitura da lei. Mas o que a motiva?

A interpretação amplamente aceita até recente parecer do TCU, era de que a LRF incorpora um tema antigo da legislação sobre instituições financeiras: a vedação dos chamados “empréstimos ao controlador”. A razão fundamental é a existência de conflito de interesse na operação. Como pergunta Cleofas Salviano Junior – no seu livro Bancos Estaduais: dos Problemas Crônicos ao Proes, publicado pelo Banco Central (que conta a evolução da legislação para coibir esses empréstimos, e nela inclui a LRF) – “Como pode a instituição avaliar isentamente o risco de crédito de seu próprio controlador? Havendo inadimplência, como cobrar execução plena e imediata dos contratos?”.

Ora, não é outro o fundamento interpretativo que envolve o inciso II do artigo 37: o mesmo conflito de interesse. Podemos perguntar analogamente: como pode a instituição de que se requer uma antecipação de pagamento avaliar isentamente a viabilidade desse adiantamento ao seu controlador vis-à-vis considerações em relação à sua missão e saúde financeira? A questão não é meramente hipotética. Basta checar a imprensa para ver a relutância como administradores do BNDES (inclusive presidentes) reagiram aos pedidos de devolução feitos nos últimos dois anos.

Note-se que o tema da vedação a “operações de antecipação” não seria uma originalidade da LRF. Já na primeira legislação financeira identificada por Salviano Junior, voltada para combater o abuso de poder do controlador de Bancos privados e estaduais, Lei 4595 de 1964, no seu artigo 34, há referência à vedação às instituições financeiras de “conceder empréstimo ou adiantamentos”.

Dois outros pontos interpretativos que frequentemente entram em discussão merecem ser revistos também. Primeiro, há os que argumentam que, se há dinheiro “sobrando” no caixa do BNDES, não há problema legal na devolução. Note-se que, teoricamente, é tão plausível uma avaliação positiva da instituição financeira sobre um pedido específico de seu controlador por uma antecipação de pagamento, quanto seria uma avaliação positiva a um pedido de empréstimo do seu controlador (que apresentasse condições favoráveis de taxas, prazo, garantia). Entretanto, a decisão do legislador foi vedar completamente a possibilidade dessas operações, aparentemente porque não considera que as avaliações que as subsidiam – se há ou não dinheiro sobrando, se as condições do empréstimo são ou não interessantes – podem ser feitas de forma isenta.

O problema do conflito de interesse envolvendo a instituição financeira e o seu controlador não é exclusivo do setor público. O agravante no caso do setor público são suas implicações fiscais, especificamente o uso abusivo do controle sobre os bancos públicos para manter uma política fiscal sem controle. Tanto a obtenção de financiamento junto aos bancos públicos, como a antecipação de pagamento, pode ser usada para o Governo escapar da adoção de uma determinada disciplina fiscal. Um julgamento convergente com essa interpretação – foi expresso recentemente pelo ex-ministro Armínio Fraga, em entrevista à Folha de São Paulo, quando ele menciona que “pegar dinheiro no BNDES produz apenas um efeito contábil”.

Voltando à questão econômica, a questão a ser enfrentada é como injetar recursos na atividade produtiva, hoje, mobilizados no BNDES. Esse é um bom problema que temos pela frente. O País precisa de infraestrutura e programas ousados de modernização industrial. Como bem diagnostica o professor Bresser Pereira, o Brasil passa por uma crise conjuntural com uma crise estrutural. A última é tão ou mais preocupante que a primeira. Precisamos nos reencontrar com uma agenda de desenvolvimento e isso vai demandar um BNDES não apenas robusto, mas com orientação muito bem planejada.