Ministério da Cidadania: o Esporte submetido à assistência social?  

A intensa experiência como gestora pública do esporte e como pesquisadora desse campo, imputou-me a refletir sobre o anúncio do novo ministro (MDB) e do ajuntamento do esporte e da cultura à pasta que trata da assistência e da previdência social (atual MDS).

Osmar Terra - Foto: Wilson Dias/Agência Brasil

Uma característica marcante do governo Temer, o que agora se repete com a equipe de transição para o governo Bonsonaro, tem sido uma sequência de decisões alarmantes, verdadeiras tragédias sobre a condução da coisa pública. Cada dia uma bomba é noticiada. Mas, aquela que me instigou a emitir opinião, trata da junção do Ministério do Desenvolvimento Social, com o Ministério do Esporte, o Ministério da Cultura e, provável, com a Secretaria Nacional de Combate as Drogas, veiculada nesta quarta-feira(28). Ao meu ver, é impossível refletir sobre o desmonte do esporte, enquanto política pública, sem analisar a totalidade dos direitos sociais. E, neste caso, sem questionar o que significa constituir um ministério “mistão” com a área social?

Porém, se observarmos mais detidamente, os passos vêm sendo trilhados desde o golpe de 2016 no governo Temer. Em nome da austeridade, o primeiro movimento foi retirar recursos vultosos do orçamento desses ministérios, o segundo foi reduzir a abrangência e o conteúdo de suas políticas públicas, o terceiro foi desestruturar as relações intersetoriais, as articulações interfederativas e sua massa crítica. O resultado é a quebra da integralidade e qualidade dos serviços, a descontinuidade e fragilização dos sistemas nacionais que constituem as redes de proteção social, do país. Basta analisarmos o impacto do teto dos gastos públicos (EC 95/2016) sobre o Sistema Único de Saúde, Sistema Nacional de Educação e o Sistema Único de Assistência Social, para concluirmos que há um encadeamento de ações coordenadas para a redução do papel do Estado enquanto indutor do desenvolvimento nacional e promotor de políticas públicas, além da iminente restrição de direitos com reformas drásticas, como a trabalhista. Isso tem reflexos no campo esportivo, pois o Brasil está sendo desmontado muito rapidamente, sob um matiz neoliberal e ultraconservador, o que coloca por terra todos os esforços feitos nos governos dos Presidentes Lula e Dilma para assegurar os direitos sociais do povo brasileiro, em especial, os trabalhadores e trabalhadoras. No esporte temos uma Política Nacional, debatida em Conferência Nacional, que durante o período foi materializada com programas e ações sistemáticas, algumas estruturantes, tanto na dimensão educacional (Programa Segundo Tempo, Recreio na Férias, Jogos Escolares), de lazer (Programa Esporte e Lazer da Cidade, Vida Saudável), quanto do alto rendimento (Bolsa Atleta, Brasil Medalhas, Rede Nacional de Treinamento), parcerias com as Universidades Públicas (Rede CEDES, CNESP), ainda, as secretarias estaduais e municipais de esporte que se expandiam e fortaleciam com seus programas. Embora restritos, os recursos se ampliavam devido à importância estratégica que o esporte ganhou na agenda presidencial, devido ao conjunto de grandes eventos esportivos captados e realizados, começando com os Jogos Pan e Parapan-Americanos, em 2007, em 2011 os Jogos Mundiais Militares, a Copa das Confederações, em 2013, a Copa do Mundo de Futebol da FIFA, em 2014 e os Jogos Olímpicos e Paralímpicos Rio 2016. Em que pese os limites e problemas inerentes a gestão pública, todas essas ações compuseram um ciclo virtuoso das políticas públicas do esporte, o que somente foi possível, porque o esporte estava investido de uma pasta ministerial, própria que lhe conferiu um corpus, a compleição e a importância política.

Agora tudo isso, parece evaporar no ar seco de Brasília. As conquistas estão sendo destruídas, uma a uma, qual uma nuvem de gafanhotos, devorando o trigal. O prenúncio é de que, no campo social, não escape ninguém do apetite voraz do capital. Nos resta construir a resistência, demonstrar a importância do esporte como um direito inalienável para a constituição da cidadania.
A intensa experiência como gestora pública do esporte e como pesquisadora desse campo, imputou-me a refletir sobre o anúncio do novo ministro (MDB) e do ajuntamento do esporte e da cultura à pasta que trata da assistência e da previdência social (atual MDS).

Mesmo sob a alcunha de Cidadania – o que poderia sugerir uma certa unidade, em determinados aspectos dessas políticas setoriais – ao meu ver, não se concretiza, porque, em forma e conteúdo, a natureza, a construção histórico-cultural, a estrutura e o movimento concreto do esporte, da cultura e da assistência social, são distintos. Essa junção, a princípio, se assemelha a uma mera aglutinação burocrática, um amontoado, uma acumulação sem ordem – na linguagem de Brasília: um "puxadinho".

Tal configuração suscita algumas reflexões. Pois, se o ministério estiver configurado como um amontoado, mascarado pela denominação “Cidadania”, haverá disputa e divisionismo interno por espaço político, por orçamento, por estrutura, por visibilidade e até por condições objetivas de cumprir o ciclo das políticas setoriais. Vamos dar o benefício da dúvida, e supor que haverá uma integração, visão de conjunto e uma unidade. Daí temos que analisar outros aspectos da relação esporte e assistência social, área matricial na pasta.

De início, pensei na relação entre o conteúdo do que trata o ministério matricial (atual MDS) e o conteúdo de que trata o Ministério do Esporte (regulado pela Lei Pelé – 9.615/98). Como será o trato das diversas formas em que o esporte se manifesta que são contraditórias àquelas da assistência social? O futebol profissional, por exemplo, que é a modalidade mais desenvolvida no Brasil, que tem a estrutura sob uma lógica oposta à da assistência – a do mercado. Como seria a coerência interna desse novo Ministério? E assim, poderíamos generalizar e pensar sobre o esporte de alto rendimento nesse novo Ministério. É preciso ponderar sobre como seria essa unidade entre uma área que detém um fundo e um sistema único público, e a área do esporte, que carrega um dilema, desde Constituição de 1988, sobre a relação da presença do Estado e a autonomia das entidades de administração esportiva, principalmente quanto aos repasses de recursos públicos. Nesse caso, que lógica prevaleceria na tomada de decisão do ministro dessa nova Pasta? De outro ângulo, quais programas seriam eliminados para garantir o funcionamento do SUAS? Que importância teriam resultados esportivos de atletas, em competições de alto rendimento, nessa disputa fraticida? Sabemos que a política é uma arena de disputas e correlação de forças, e a maior força vem de fora, esmagando a área social do país – o esporte estará mais vulnerável, porque não tem um sistema nacional consolidado, não tem um fundo público, tem apenas alguns excertos que garantem algumas ações do alto rendimento, como o Bolsa Atleta, mas condicionadas a disponibilidade orçamentária.

Outra questão que salta aos olhos, referente à coerência externa. O governo Temer – de onde é originário o novo ministro – basicamente, aniquilou com os dois maiores programas esportivos de cunho social (Programa Segundo Tempo e Programa Esporte e Lazer da Cidade), programas importantes voltados para construção da cidadania esportiva, auto organização e autonomia, rompeu vínculos intersetoriais com o MEC, MTE, MinC, aprofundou o fosso das desigualdades regionais locais e territoriais, do país. Se resgatarmos o raciocínio anterior, e pensarmos na possibilidade da construção da unidade dos campos, no interior do novo ministério. Daí advém uma dúvida, como seria ou será o trato dado ao esporte educacional, numa pasta de cunho assistencial? Como se daria a relação do esporte com a escola, as aulas da disciplina de Educação Física seriam preservadas? Como seria e será tratado o lazer esportivo?

Instrumentalizado, sob a visão funcionalista e assistencial? Se o atual governo não garantiu a cidadania esportiva, ao contrário, a desmobilizou, podemos esperar mudanças avançadas nesse quadro, tendo o ministro da continuidade? Ainda indagaria: como recompor o orçamento público do esporte, que encolheu em torno de 50% desde 2016, para ampliar a democratização do esporte para crianças e jovens, buscando a universalização do acesso? Nem todos querem praticar esporte como atleta, aliás, não é a preferência da maioria. O esporte deve ser garantido pelo Estado, para todas as pessoas, ao longo de suas vidas. Porém, sob a égide da escassez, como pensar no acesso ao esporte dos adultos e idosos, com as especificidades das comunidades tradicionais, pessoas com deficiência entre outras? Veremos que o preceito constitucional é letra quase morta.

A terceira questão é de ordem institucional. Se numa pasta própria, o esporte era lanterninha no orçamento, e agora, sem os Grandes Eventos para carrear recursos, submetido a um ministério enorme, problemático e complexo, que grau de prioridade o esporte teria nessa estrutura burocrática? Lembremos da reforma da previdência que será o próximo alvo dos lobos ciosos por carne nova no mercado. Embora a previdência e a assistência públicas sejam superavitárias, segundo resultado da auditoria contratada pelo Congresso Nacional, em 2018, o capital internacional fará de tudo para abocanhar essa fatia gorda da economia do país, isso impactará o “mistão” da cidadania. Aqui, a palavra cidadania está empregada de forma retórica, não pode falar em cidadania, com teto de gastos públicos, aumento do desemprego formal, o aprofundamento das desigualdades sociais e o cerceamento das liberdades democráticas.

Tais reflexões nos advertem quanto ao agravamento da insuficiência do sistema esportivo brasileiro para atender às necessidades do seu povo. Parece que a luta de treze anos, que envolveu quase todos os seguimentos do esporte, por um Sistema Nacional do Esporte unitário, descentralizado, democrático, para além da mera formalidade, foi ceifado do horizonte próximo.
Enfim, pergunto a vocês, meus pares, dos diversos segmentos esportivos, colegas de lutas, por anos a fio: nada faremos? Como deve ser revestida a resistência ao desmonte do esporte no país? Estou falando da Política Nacional do Esporte, e não de nossas corporações ou interesses particulares. Vamos arriar as bandeiras e esperar que o esporte retroaja, ainda mais? Vamos perder nossas conquistas?