Do Moro a Moroflex: do juiz implacável ao ministro do possível

É quase irrelevante, beirando o bizantino, o debate que mobilizou a parcela oposicionista do Brasil após o juiz Sérgio Moro aceitar o convite do presidente eleito, Jair Bolsonaro: com a ida ao novo governo, o algoz do ex-presidente Lula contradisse sua promessa pretérita de não entrar na política? 

Por Rodrigode de Almeida, do Poder 360

Sergio Moro - Foto: Lula Marques/AGPT/Fotos Públicas

Atalho para o narcisismo autovitimizador caro a muitos lulo-petistas e simpatizantes em geral, declarando o convite e o aceite como provas da conspiração da Lava-Jato contra o PT e contra Lula.

Considero uma linha elevante de debate porque inútil. Primeiro, o cargo que Moro ocupará a partir de 1º de janeiro é técnico e sua função pode ser exercida ou não por um político; segundo, como escreveu a jornalista Miriam Leitão: “alguém ir para o governo não significa que virou um político. Inúmeras pessoas entram e saem e não viram políticos”.

É um debate bizantino porque desnecessário. Ou alguém que pertence à banda crítica à Lava-Jato desconhece as travessuras políticas protagonizadas por Moro durante o seu reinado na operação de Curitiba? O futuro ex-juiz sempre agiu movido a cálculo político. Mais do que isso, viu-se como um político-herói.

Em seus atos, gestos, declarações, sentenças e até mesmo silêncios calculados, dirige-se à plateia, não à Justiça e aos réus, e enxerga seus destinatários como eleitores, seguidores, fãs, e seus críticos como adversários de sua causa. E, se juízes fazem Justiça, heróis –sabemos– fazem justiçamento.

Assim é o futuro ex-juiz Sérgio Moro desde sempre. Aquele que, de modo ilegal, contra a Constituição (como reconheceria mais tarde o Supremo Tribunal Federal), autorizou a gravação e vazou conversa da ex-presidente Dilma Rousseff com Lula, dando o impulso definitivo ao processo de impeachment em 2016.

Aquele que, agindo como magistrado, tornou públicos, a 6 dias do 1º turno da eleição, trechos da delação premiada do ex-ministro Antonio Palocci, ajudando a pavimentar a avenida que levou o seu futuro chefe ao Palácio do Planalto.

Antes, durante e depois, Moro foi e é também o político que ajudou a fazer da Lava-Jato um novo sistema político-judicial vigente no Brasil. Que tornou método sentenciar políticos de morte política antes mesmo de encerrar o processo e declará-los oficialmente culpados. Que, como tantos outros políticos, exalta a própria virtude (do bem), busca desmoralizar o adversário e define muitas de suas escolhas olhando para o eleitor (ou seguidores).

(Antes que as gralhas gritem, convém lembrar que a Lava-Jato condenou mais de 100 pessoas, entre políticos, empresários e operadores, puniu gente também do MDB e do PSDB e levou à prisão parlamentares de partidos que hoje estão indo para a base do governo Bolsonaro, como o PP. Exemplos que desmistificam tanto o suposto ataque exclusivo ao PT, como, no último exemplo, a prova da pureza anticorrupção do novo governo.)

A candura aparente do futuro ex-juiz contrata com a perversidade política de seus atos. É a marca da sua maldade –e, como ensinou Maquiavel, “a ambição do homem é tão grande que, para satisfazer uma vontade presente, não pensa no mal que daí a algum tempo pode resultar dela”.

Protegido pela mídia tradicional, acostumou-se a negar a política, praticando-a o tempo inteiro. Sua loquacidade é travestida de exaltação do bem geral. Seus gestos, calculadamente populistas, como quando se deixou fotografar chegando ao trabalho com uma sacola plástica branca com marmita do almoço.

Era um político disfarçado de magistrado ao dirigir-se ao Facebook para “transmitir um recado” sobre um interrogatório de Lula, falando a “muita gente que apoia a operação Lava Jato”. Procedimento comum a um juiz? Só a Moro. Em outro momento, usou um púlpito para, num discurso, dizer que “daqui a 10 anos” haverá melhores condições para o investidor estrangeiro (sim, no Brasil juiz faz discursos).

Então vamos combinar: Sérgio Moro é político muito antes de aceitar levar a toga para dentro do governo Bolsonaro.

No que chegamos ao ponto mais relevante: como ele vai conciliar-se com a agenda do novo presidente. Ou, como me disse um sábio amigo, como se comportará o Moroflex –o juiz implacável que dá lugar ao ministro do possível, a mutação da condição de cabo eleitoral à cegueira deliberada sobre o caixa 2 do futuro ministro-chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni.

Sérgio Moro interferiu no processo eleitoral. Não necessariamente mudou o curso de sua rota, mas interferiu mesmo assim, agindo como um pistoleiro no faroeste em que se transformou a disputa presidencial. Feriu, e não apenas uma vez, a desejável neutralidade do Judiciário. Contribuiu para o abalo da já instável democracia brasileira.

Agora, como ministro, cumprirá um estágio probatório para uma eventual nomeação ao STF (Supremo Tribunal Federal), em 2020, e ingressou na política eleitoral para a sucessão presidencial de 2022. Pode ter trincado sua isenção de magistrado e os propósitos da Lava Jato, mas a história costuma ser escrita pelos vencedores. E, uma vez no poder, Moro se alia àqueles que escreverão a história. Jogo jogado, jogo ganho por ele até 2ª ordem.

Enquanto ajuda a reescrever a história, precisará lidar com as diferenças, temores e instabilidades do novo presidente. Como Bolsonaro, será obrigado a fazer algo de que nunca gostou: dar satisfações. Já que sempre se julgou moralmente acima dos demais, tratou toda e qualquer crítica como bobagem.

Dar satisfações, ser confrontado, responder a críticas e questionamentos constituem algo não exigido de super-heróis, mas certamente de quem aparece ombreado a Onyx Lorenzoni, Magno Malta e representantes do centrão. E, sobretudo, de quem coloca a carreira e a reputação num governo com integrantes que já fizeram ameaças sérias à democracia e um presidente recordista em declarações ofensivas às minorias.

Presidente a quem Moro classificou esta semana de “moderado”, “ponderado”, “sensato” e sobre o qual não paira “risco à democracia e ao Estado de Direito”.

O futuro ex-juiz e ministro foi bem-sucedido no primeiro teste, na paciente entrevista que concedeu a jornalistas na terça-feira (6). Mas deixou abertos os imensos pontos de interrogação que pairam sobre o ponto mais relevante aqui –a sua conciliação com a agenda do novo governo. Esquivou-se de expor qualquer ideia sobre demarcação de terras indígenas, política de fronteiras, refugiados e outras pautas que dizem respeito ao Ministério da Justiça.

Pode ter agido assim por autoproteção, receio de opor-se ao pensamento de Bolsonaro e falta de tempo para tratar destes temas com o presidente eleito. Legítimo e prudente. Mas os mais céticos podem duvidar de sua capacidade de ser um ministro da Justiça: Moro corre o risco de querer ser exclusivamente o “ministro da Lava Jato”.

Entre ser ministro do possível e dos problemas complexos cotidianos que movem a pasta, preferirá a condição de ungido pela virtude, o homem acima do bem e do mal destinado a livrar o país da corrupção e da dissolução moral. Até descobrir que governo não foi feito para promover o paraíso, mas para impedir o inferno.
 
*Rodrigo de Almeida é jornalista e cientista político. Foi diretor de jornalismo do iG e secretário de Imprensa de Dilma. É autor de "À sombra do poder: bastidores da crise que derrubou Dilma Rousseff".

Fonte: Poder360



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