O significado da eleição de Jair Bolsonaro para as mulheres

Vitória da barbárie sobre a civilização é nociva especialmente para as mulheres, tanto na esfera material quanto ideológica. Com agenda ultraliberal, antinacional e antidemocrática — além da misoginia histriônica — Bolsonaro et caterva representam um duro golpe também na emancipação das brasileiras.

Por *Mariana de Rossi Venturini

Fernando Frazão/Agência Brasil

Histórico lamentável de ofensas a mulheres

Tratado como “mito” por parcela da sociedade brasileira, quando deputado, Jair Messias Bolsonaro se notabilizou e ganhou projeção por sua visão profundamente antifeminista, racista e preconceituosa contra população LGBT — valores, além de arcaicos, inconstitucionais. Parlamentar inepto, alimentou-se de um polemismo tosco, ganhando holofotes da imprensa ao proferir absurdos como “eu falei que eu não a estuprava porque você não merece” (OESP, 9/12/2014) ou “mulher tem que ganhar menos porque engravida” (Jornal Zero Hora, 10/12/2014), ou ainda “tenho cinco filhos. Foram quatro homens, aí no quinto eu dei uma fraquejada e veio uma mulher” (Revista Exame, 6/4/2017), dentre outras pérolas de um machismo tenebrosamente reacionário.

Note-se que essas foram frases que ele proferiu em público, para quem quisesse ouvir. Para os ingênuos (ou cínicos) que afirmam que “o mito” não acredita efetivamente nisso, que seriam apenas frases de efeito para ganhar atenção da imprensa, é bom lembrar que ele foi acusado de ameaçar de morte a segunda ex-mulher (El País, 26/09/2018) e de agredir fisicamente a primeira (Jornal do Brasil, 27/8/1998).

Esse desprezo pelas mulheres e pela condição feminina não se restringe ao presidente eleito, mas se estende a todo o seu círculo político próximo — tal como seu vice, General da Reserva Hamilton Mourão, para quem lares chefiados por mulheres seriam “fábricas de desajustados” (Revista Exame, 17/9/2018) — e apoiadores efusivos, que inclui gente da estirpe de Silas Malafaia, Edir Macedo e Magno Malta, antifeministas militantes, notabilizados enriquecer manipulando a fé do povo e disseminar valores retrógrados e obscurantismo para milhões de fiéis. Não à toa, o slogan de campanha de Bolsonaro foi “O Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”.

Programa Bolsonaro para o Brasil

Nas suas 81 lâminas de powerpoint repletas de platitudes e desinformação ideologizada, do programa que Jair Bolsonaro registrou no Tribunal Superior Eleitora – TSE como sua plataforma de governo, salta aos olhos que a palavra “mulheres” (já que “gênero” é um termo banido, ainda que seja o conceito empregado pelas Nações Unidas) apareça apenas uma vez, e na condição de vítima: “Combater o ESTUPRO de mulheres e CRIANÇAS” (Programa registrado no TSE, grifos dos autores). Ainda assim, a resposta que ele oferece é, no mínimo, simplista, para não dizer sofrível: liberar o porte (sempre!) de arma e castração química de acusados de estupro. Muito já foi dito sobre como a liberação do porte de armas não diminui a violência, ao contrário. É uma proposta que visa a aumentar os lucros da indústria armamentista, apenas. (Entrevista com Isabel Figueiredo, 08/02/2018).

Já sobre a ideia de castração química de estupradores, ela se assenta na ideia de que quem comete um estupro o faz por uma questão hormonal, portanto natural, e não social. Repousa no mito de que a libido masculina é incontrolável. O que é altamente desonesto. Homens são, assim como as mulheres, seres com farta capacidade racional e de autocontrole, o que nos permite, inclusive, viver em sociedades grandes e complexas com as sociedades contemporâneas. O estupro era e continua sendo relação de poder, violência e domínio da vítima pelo agressor, nunca um amor incontido ou uma sexualidade extravagante.

Ademais, a política pública deve ser para que estupros não ocorram, não para que o Estado tenha poder de vingança sobre quem comete crime. Para quem comete estupro, o Código Penal já tem punição definida. O desafio das mulheres permanece sendo denunciar e o do Estado acolher decentemente essas mulheres, ao contrário do que ocorre historicamente com quem denuncia os agressores, seja nas delegacias ou nos tribunais: não raramente são desacreditadas, julgadas e expostas. Ou seja, para diminuir o número de estupros, formar uma sociedade menos machista é bastante mais eficiente que armar a população ou castrar quem quer que seja. Para isso, o debate de gênero nas escolas é fundamental.

Sobre desigualdade salarial, acesso aos espaços de poder e decisão, políticas públicas de combate à violência sexista, nem uma única linha. Se considerarmos que este é o país onde a cada 15 segundos uma mulher é agredida pelo parceiro ou alguém próximo e em que ocorreram trágicos 100 mil feminicídios nos últimos 30 anos, o silêncio é ensurdecedor e diz muito sobre para quem, de fato, irá governar Jair Bolsonaro e asseclas. Está equivocado quem acredita que seja para os “homens, brancos, héteros e de meia idade”, pois isso significaria ainda alguns milhões de pessoas que formam a massa de trabalhadores do Brasil. Bolsonaro irá governar para quem possibilitou que ele, um folclore da ultradireita, se elegesse: o grande capital financeiro internacional. É o programa ultraliberal de investimento zero, ajuste máximo, que sobrecarrega especialmente as mulheres: que precisam do Estado, mais que qualquer outro segmento social.

No que diz respeito aos direitos sexuais e direitos reprodutivos das mulheres, o Programa Bolsonaro também cala, o que já diz muito sobre sua concepção de mundo. Ele não menciona o aborto, que, no país, é autorizado em caso de estupro, risco para a vida da gestante ou de fetos com anencefalia. O candidato prometeu vetar qualquer tentativa de flexibilização desta lei, mas nada disse sobre não endurecê-la, e, tenho em vista quem lhe dá base de sustentação, podemos esperar investidas contra o direito das brasileiras de interromperem uma gravidez indesejada, mais uma vez, contrariando as orientações das Nações Unidas e as tendências de todas as nações desenvolvidas, que descriminalizaram o aborto e o combinaram com uma ampla política pública de planejamento familiar.

Não existe investimento e desenvolvimento social em saúde e educação etc. com congelamento de gastos do Estado, venda do patrimônio nacional e todo o entulho da agenda neoliberal. Por razões culturais, são as mulheres que cuidam das crianças menores, levam ao médico, ao parquinho, à escola, cuidam dos enfermos, dos idosos, etc. Para as mulheres dos extratos mais pobres, a proposta de ensino à distância em todas as fases da vida, além de uma excrescência pedagógica, significa a impossibilidade de poder trabalhar fora e ganhar seu próprio dinheiro, perda no orçamento da casa e na autonomia de milhões de brasileiras. Num universo em que os direitos das mulheres já estão sendo massacrados pela reforma trabalhista aprovada e pela reforma da previdência que se pretende aprovar, além do desmonte do Sistema Único Saúde. Ou seja, não é apenas no discurso que o governo Bolsonaro é contra as mulheres, mas no mais essencial do conteúdo de seu governo: antinacional, antidemocrático, antipopular e antifeminista.

Isso é o que se desenha no âmbito do Estado. Na esfera da sociedade, a tendência é que as forças conservadoras também insistam na sua ofensiva obscurantista: as denúncias de perseguição e agressões vêm se multiplicando Brasil afora e a tendência é que casos como o da antropóloga Débora Diniz e a historiadora Marlene Fáveri se tornem mais e mais comuns. Violências contra feministas, militantes de esquerda, LGBTs e negros também devem se ampliar, seja a partir da sociedade ou mesmo de agentes do Estado, como nos casos das ações policiais em universidades orientadas por mandados judiciais ou não. Em todos esses casos quem defende a democracia soube responder de maneira firme e não se intimidou diante do arbítrio, mostrando que, para além da esquerda, o campo dos defensores da democracia é amplo e segue em combate no Brasil.

Nossas armas: resistência e amplitude

As mulheres brasileiras deram uma incrível demonstração do que deve ser a resistência democrática ao longo da campanha eleitoral — e para além dela. Organizaram atos politicamente amplos, massivos, de vários matizes ideológicos, que ultrapassou os limites dos movimentos sociais organizados e levou às ruas milhões de pessoas em mais de 80 cidades brasileiras além de mobilizações em cidades da Argentina, Austrália, Canadá, Espanha, França, Portugal e Estados Unidos. Tais mobilizações puseram o mundo em alerta sobre o perigo que representava a vitória do candidato proto-fascista e diversos artistas de envergadura, como Madonna e Roger Waters, abraçaram a consigna: #EleNão. Esse belíssimo movimento de resistência democrática, aliados aos movimentos de “Vira voto” da última semana, que consistiu em ir para as ruas conversar diretamente com o povo, com a presença inclusive de artistas e intelectuais, conseguiu diminuir a diferença de votação entre o candidato fascista e Haddad.

Não foi o suficiente para vencer, mas foi o suficiente para demonstrar a força das mulheres brasileiras na organização da resistência democrática. Não partiremos do zero. Organizaremos a resistência a esse projeto machista, antipopular, antidemocrático e antinacional tendo como impulso as poderosas manifestações que reverberaram nossa indignação por todo o mundo. As mulheres brasileiras compreenderam que o caminho é a resistência radical: porque vai à raiz do problema que é o projeto político de Bolsonaro; ampla: porque irá congregar os mais amplos setores da sociedade, sem sectarismos, hegemonismos ou estreitezas, em unidade para isolar o inimigo comum; e democrática: faremos a defesa da democracia de forma intransigente, para que consigamos barrar a agenda de desmonte do Estado e dos direitos sociais do campo conservador e possamos voltar para o rumo democrático, nacional e popular, avançando com as mulheres e os trabalhadores, em defesa do Brasil e dos direitos do povo: a unidade é a bandeira da esperança.
*Mariana de Rossi Venturini é presidente da União Brasileira de Mulheres no Estado de São Paulo (UBM/SP) e vice-presidente nacional da entidade.

Referências

Bolsonaro diz em plenário que não estupraria deputada 'porque ela não merece' – O Estado de São Paulo, 9/12/2014 – Disponível em https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,bolsonaro-diz-em-plenario-que-nao-estupraria-deputada-porque-ela-nao-merece,1604514

Bolsonaro diz que não teme processos e faz nova ofensa: "Não merece ser estuprada porque é muito feia" – Jornal Zero Hora, 10/12/2014. Disponível em https://gauchazh.clicrbs.com.br/geral/noticia/2014/12/Bolsonaro-diz-que-nao-teme-processos-e-faz-nova-ofensa-Nao-merece-ser-estuprada-porque-e-muito-feia-4660531.html

Piada de Bolsonaro sobre sua filha gera revolta nas redes sociais – Revista Exame, 6/4/2017. Disponível em https://exame.abril.com.br/brasil/piada-de-bolsonaro-sobre-sua-filha-gera-revolta-nas-redes-sociais/

Ex-mulher de Bolsonaro disse ao Itamaraty que ele a ameaçou de morte – El País, 26/09/2018. Disponível em https://brasil.elpais.com/brasil/2018/09/26/politica/1537913905_985857.html

Bolsonaro agride mulher – Jornal do Brasil, edição impressa, 27/8/1998. Disponível em http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=030015_11&pasta=ano%20199&pesq=Jair%20Bolsonaro

Mourão diz que família sem pai ou avô é fábrica de elementos desajustados – Revista Exame, 17/9/2018. Disponível em https://exame.abril.com.br/brasil/mourao-diz-que-familia-sem-pai-ou-avo-e-fabrica-de-elementos-desajustados/

O Caminho da Prosperidade – Proposta de Plano de Governo (Bolsonaro 2018) – Disponível em http://divulgacandcontas.tse.jus.br/candidaturas/oficial/2018/BR/BR/2022802018/280000614517/proposta_1534284632231.pdf

Acesso a armas de fogo pode aumentar ainda mais a escalada da violência. Entrevista especial com Isabel Figueiredo. Instituto Humanitas Unisinos – Disponível em http://www.ihu.unisinos.br/159-noticias/entrevistas/575912-acesso-a-armas-de-fogo-pode-aumentar-ainda-mais-a-escalada-da-violencia-entrevista-especial-com-isabel-figueiredo

Ameaçada de morte, antropóloga Débora Diniz será incluída em programa de proteção – Disponível em http://www.justificando.com/2018/07/25/ameacada-de-morte-antropologa-debora-diniz-sera-incluida-em-programa-de-protecao/

“Não posso orientar quem não acredita naquilo que estuda”, afirma Marlene de Fáveri – http://catarinas.info/nao-posso-orientar-quem-nao-acredita-naquilo-que-estuda-afirma-marlene-de-faveri/

Mulheres vão às ruas em 80 cidades do país protestar contra Bolsonaro neste sábado – Disponível em https://odia.ig.com.br/eleicoes/2018/09/5579305-mulheres-vao-as-ruas-em-80-cidades-do-pais-protestar-contra-bolsonaro-neste-sabado.html#foto=1