30 anos da Constituição Cidadã: os direitos sob ameaça antidemocrática

Se, há 30 anos, os debates da Assembleia Constituinte tinham por objetivo encerrar o ciclo de instabilidade política no país e consolidar o período democrático, atualmente, a luta pela simples obediência dos preceitos constitucionais já é algo revolucionário.

Por Tassyla Queiroga*

Ilustração: Olavo Costa/Quanta Academia de Artes

 No dia 5 de outubro de 2018, a Constituição Cidadã completa 30 anos, a partir da sua promulgação. Ainda hoje é considerada o principal símbolo da redemocratização do país, trazendo inovações em seu texto legal, que possibilitaram avanços sociais e relativa estabilidade entre os Poderes. No atual contexto político é fundamental uma análise dos avanços e desafios enfrentados pela Carta Magna até agora, para estabelecer quais conquistas foram efetivadas, e quais passos poderão aprofundar a concretização dos direitos sociais previstos.

O conceito original de Constituição se associa diretamente à garantia de direitos fundamentais e à ideia de Separação dos Poderes. A Constituição de 1988 veio fortalecer o papel do Judiciário como defensor da cidadania, após o tenebroso período de ditadura militar. É a sétima Constituição do Brasil, a partir da sua Independência, sendo que a Constituição anterior, de 1967, refletiu em seu conteúdo todo o autoritarismo imposto pelos militares durante duas décadas, com consequências nefastas, como as eleições indiretas para Presidente da República, suspensão de direitos políticos, imposição de censura à imprensa, dentre outras imposições ditatoriais.

A insatisfação popular e a pressão pela volta do período democrático possibilitaram a criação de uma Assembleia Nacional Constituinte. Após longas discussões sobre o texto legal, com intensa participação popular, foram definidos quais direitos civis e políticos deveriam ser legitimados.

Dentro do contexto histórico, se tornou célebre a frase do Parágrafo único do Artigo 1º: “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos da Constituição”. Foram permitidas emendas populares e realizadas audiências e consultas públicas no Congresso, para retomar a participação do povo nas decisões políticas do país.

A Constituição Cidadã, que ganhou esse nome devido à longa previsão de direitos sociais, é uma das mais extensas do mundo, com normas ditas programáticas, que possibilitaram importantes avanços sociais. As normas constitucionais estão acima de todas as outras do ordenamento jurídico brasileiro, e disciplinam os direitos e deveres dos cidadãos, o papel do poder público, as atribuições dos entes federativos (União, Estados e Municípios) e das três esferas de Poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário).

Não resta dúvida quanto ao seu caráter civilizatório e humanitário, com destaque para o seu artigo 5º, que defende a igualdade de todos perante a lei, a livre manifestação do pensamento, a função social da propriedade, o acesso à informação e o direito de manifestação, dentre outros direitos individuais e coletivos.

Dentro dos direitos sociais, econômicos e culturais, houve conquistas para grupos de crianças, jovens, idosos, mulheres, negros e índios, que se beneficiaram com o ideal de igualdade material defendido pelo princípio constitucional. Entre as principais conquistas, se destacam os direitos sociais do artigo 6º, que prevê educação, saúde, alimentação, trabalho, moradia, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância, e assistência aos desamparados.

Como exemplo, foi apenas a partir de sua vigência, que o Sistema Único de Saúde (SUS) foi implantado, com acesso universal e gratuito à população, sendo considerado até hoje um dos maiores e melhores sistemas de saúde pública no mundo. No campo da educação, foi definida a universalização do direito para o pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para a cidadania e a qualificação para o trabalho.

Quanto aos direitos políticos, houve inovação no direito de voto pelos analfabetos e jovens a partir dos 16 anos, além dos mecanismos de defesa da cidadania. Como exemplos, a previsão de referendo e plebiscito, lei de iniciativa popular, conselho social, orçamento participativo, plano diretor e ação popular. Além das previsões de organização política e jurídica, no rol de direitos fundamentais, a Constituição também abordou temas de direitos ambientais, culturais, tributários e consumeristas.

Devido à quantidade de artigos e à necessidade de atualização do texto legal, dezenas de alterações de pontos controversos foram realizadas através de Emendas Constitucionais. Desde 1988 até setembro de 2018, foram aprovadas 99 emendas, sob os mais variados temas. A Emenda Constitucional nº 16/1997 (PEC da Reeleição), que aprovou o segundo mandato para Presidentes, Governadores e Prefeitos, e a Emenda nº 88/2015 (PEC da Bengala), que aumentou para 75 anos a idade para aposentadoria compulsória de ministros de tribunais superiores, são exemplos de como alterações constitucionais podem influenciar diretamente no campo político.

Após o Golpe de estado em 2016, o governo de Michel Temer aprofundou retrocessos sociais, utilizando pautas inconstitucionais com apoio do Congresso, e sob a tutela do Supremo Tribunal Federal. Se destaca a imposição da Emenda nº 95/2016 (PEC do Teto dos Gastos), que impôs o congelamento por 20 anos de investimentos com gastos sociais e inviabiliza a concretização do Estado Social de Direito, devido a impulsos desconstituintes que atuam de forma ilegítima contra os interesses da população e contra os próprios preceitos constitucionais.

Já a lei nº 13.467/2017 prevê a Reforma Trabalhista e tem vários dispositivos flagrantemente inconstitucionais, que frustram ou impedem a aplicação dos artigos 7º e 8º da Constituição. Como exemplos, a possibilidade de que o negociado prevaleça sobre o legislado, o pagamento inferior ao salário mínimo, a dificuldade de acesso à justiça, a limitação do valor do dano moral do trabalhador e a admissão do trabalho de empregada gestante ou lactante em ambiente insalubre, dentre outros pontos do texto legal, que vão de encontro aos direitos fundamentais trabalhistas.

Se, há 30 anos, os debates da Assembleia Constituinte tinham por objetivo encerrar o ciclo de instabilidade política no país e consolidar o período democrático, atualmente, a luta pela simples obediência dos preceitos constitucionais já é algo revolucionário.

Em seu discurso no dia da promulgação da Constituição Cidadã, Ulysses Guimarães afirmou que: “A persistência da Constituição é a sobrevivência da democracia. Quando, após tantos anos de lutas e sacrifícios, promulgamos o estatuto do homem, da liberdade e da democracia, bradamos por imposição de sua honra: temos ódio à ditadura. Ódio e nojo. Amaldiçoamos a tirania onde quer que ela desgrace homens e nações, principalmente na América Latina”.

Infelizmente, assistimos a lógica se repetir, e seguimos com as mesmas palavras de luta, na defesa dos direitos do homem e na recusa ao retrocesso autoritário, que representa o oposto das previsões de nossa Constituição. É preciso criar resistência nas ruas e nas urnas, e defender o valor de nossa Constituição Cidadã como principal instrumento contra as arbitrariedades estatais, para resgatar o valor do Estado Democrático de Direito.

*Tassyla Queiroga é mestre em Direito Constituicional pela Universidade de Lisboa. Servidora pública e ativista dos direitos humanos.