Importância do acervo egípcio do Museu Nacional na História do Brasil

O acervo egípcio do Museu Nacional confunde-se com a própria História do Brasil. Para demonstrar essa relação, o artigo voltará aos primeiros anos da Independência. Passará ao Reinado de Dom Pedro II, considerado o pai da Egiptologia Brasileira. Finalmente, verificará a importância histórica das principais peças do Egito Antigo para a ciência.

Por Thomas Henrique de Toledo Stella*

Múmia Sha-Amun-en-Su - Divulgação

O regime imperial e o iluminismo maçônico

Em 7 de setembro de 1822, o Brasil tornou-se independente de Portugal. Dom Pedro I foi coroado o primeiro monarca do recém-fundado Império do Brasil. Diferentemente dos novos países oriundos da antiga América Espanhola que adotaram o regime republicano, o Brasil tornava-se uma monarquia. Por sua grandiosa extensão geográfica, nasceu como um Império, considerado naquela época como a mais avançada das formas de governos.

Dois anos depois, Dom Pedro I foi iniciado na Maçonaria. O nome escolhido em sua iniciação foi Guatimozin, o último Imperador Asteca. O simbolismo remetia à ideia de retorno de um grande Império nas Américas. Assim, o regime imperial brasileiro podia, portanto, reivindicar seu lugar numa linhagem histórica e assim perfilar ao lado de Egito, Assíria, Roma, França, Grã-Bretanha, mas também o pré-colombiano Asteca.

A Grande Loja Maçônica Unida da Inglaterra havia sido fundada 1717. Logo, lojas maçônicas espalharam-se pela Europa e América, tornando-se o refúgio secreto de defensores dos ideais iluministas. O Grande Oriente da França, fundado em 1728, passou a ser o difusor de valores revolucionários que culminariam em slogans como “liberdade, igualdade e fraternidade”. A Revolução Francesa foi o ponto de culminância desses ideais iluministas. Sua influência viria a se fazer presente em todos os processos de Independência nas Américas.

Com as notáveis diferenças políticas entre a conservadora Maçonaria inglesa e a revolucionária Maçonaria francesa, ocorreu uma dispersão de ritos maçônicos, baseados em tradições distintas. Quanto mais ocultista o rito, mais ele aproximava-se do Antigo Egito, da cabala judaico-cristã, do helenismo clássico greco-romano e da alquimia medieval e renascentista. A maior influência egípcia chegou nos ritos maçônicos no contexto do retorno da expedição de Napoleão.

A Egiptologia e a Egiptomania

Napoleão retornou à França em 1801 após uma campanha militar e científica no Egito. Como propaganda de sua expedição, Napoleão passou a ser um promotor do Antigo Egito na França e na Europa. Logo, o interesse por esta civilização tornou-se uma febre entre as monarquias imperiais, nobrezas e burguesias europeias e americanas. A publicação de livros, realização de feiras e a incorporação de peças egípcias ao Museu do Louvre, ajudaram a popularizar esta civilização, que era adotada pelos impérios europeus como exemplo de longa durabilidade. Afinal, o regime faraônico sobreviveu por três mil anos, algo nunca alcançado mesmo até hoje.

Em 1804, Napoleão corou-se Imperador da França, utilizando-se de inúmeras referências ao Antigo Egito para legitimar sua posição. Difundir a glória e a grandeza do Antigo Egito, era uma forma também de reconhecer a França Imperial. Em 1822, mesmo ano da Independência do Brasil, o linguista francês Jean François Champollion completou o deciframento da escrita hieroglífica egípcia. A partir deste momento, a História do Antigo Egito deixava de ser escrita apenas pelo olhar da bíblia e dos relatos gregos e passava a falar por si mesma. Surgia uma nova ciência, batizada de Egiptologia, que se tornou o campo de estudo de tudo aquilo que se relaciona ao Antigo Egito. A febre que isto despertou, levou ao surgimento de um fenômeno de massas: a Egiptomania, que se alimentava de cada nova descoberta, das peças que chegavam à Europa, das publicações e viagens turísticas pelo Nilo que eram obrigatórias a qualquer magnata europeu ou americano.

Neste contexto, o italiano Giovanni Battista Belzoni pilhava o Egito em busca de tesouros antigos. Belzoni tornou-se um verdadeiro saqueador e contrabandista de peças para a Europa, abastecendo antiquários, museus e coleções privadas. Parte deste carregamento foi trazido às Américas. É aqui que a História Egípcia Antiga encontra-se com a História Brasileira.

O Egito Antigo no Brasil Imperial

No ano de 1826, ocorreu um fato que viria a reforçar a construção ideológica do recém fundado Brasil com o mais duradouro Império da História: o Antigo Egito. Um contrabandista italiano chamado Nicolau Fiengo levava a Buenos Aires um carregamento de peças egípcias, de objetos provavelmente oriundos das pilhagens de Belzoni. Contudo, ao atracar no porto do Rio de Janeiro, teve a notícia de que o país vizinho encontrava-se em meio a uma Revolução. Por isto, decidiu leiloar suas peças na capital do jovem Império. Dom Pedro I arrematou todas e doou-as ao Museu Real, fundado em 1818 por Dom João VI, hoje conhecido por Museu Nacional. A maior parte delas vinha do Vale dos Reis, na antiga Tebas e atual Luxor.

Dom Pedro I abdicou ao trono em 1831. Só veio a ser substituído por seu filho, Dom Pedro II, em 1840. Este segundo monarca teve um longo Reinado e foi conhecido por ter sido um patrocinador da ciência, da educação, da cultura e das artes. Sua paixão declarada era o Antigo Egito. Por isto, ele é conhecido como o pai da Egiptologia Brasileira.

Dom Pedro II esteve duas vezes no Egito. Era amigo pessoal do Egiptólogo francês Auguste Marriette, com quem aparece na foto junto à Esfinge, tirada com a Família Real. Em 1876, Dom Pedro II foi presenteado pelo quediva Ismaili com um esquife intacto com sua múmia dentro. Ele pertencera à cantora do templo de Karnak, Sha-Amun-en-Su. O esquife ficava na própria sala do Imperador, de onde ele despachava, no mesmo palácio da Quinta da Boa Vista que viria a ser a sede do Museu Nacional após a proclamação da República.

O acervo egípcio do Museu Nacional

Com a queda do regime imperial, o acervo egípcio perdia sua importância política e passava a ser reconhecido por seu valor científico. Em 1901, as estelas funerárias e votivas da coleção foram fotografadas para o Grande Dicionário Hieroglífico de Berlim. Em 1919, foi publicado o Guia das Coleções de Arqueologia Clássica do Museu Nacional, incluindo o acervo egípcio.

Atualmente, compunha-se de 700 peças, sendo o maior acervo de Egiptologia da América Latina. Ele continha peças que cobriam praticamente toda a História do Antigo Egito, desde o período Pré-Dinástico (entre 5 mil a 3 mil aEC) ao período Romano (de 32 aEC a 395 EC). A maior parte era, contudo, do período Faraônico (80% das peças, de 3 mil aEC a 32 EC), especialmente do Novo Reinado (1550 a 1069 aEC ) e do III Período Intermediário (1069 a 332 aEC.).

No acervo, encontrava-se diversos objetos, a maioria de contexto religioso e funerário. Havia papiros, estátuas de Deuses e Deusas, estelas funerárias e votivas, shabits (imagens de pessoas para acompanharem o finado no além-vida), amuletos para proteger o corpo mumificado, esquifes, vasos canópicos (para guardar os órgãos do morto) e múmias de gatos, filhotes de crocodilos, íbis, tartarugas e humanos.

As múmias humanas do Museu Nacional pertenceram a: 1) Hori, um sacerdote de alta hierarquia da 21ª Dinastia (cerca de 1 mil aEC), com os títulos de Escriba Real, Mordomo Real e Superintendente do Harém Real da Esposa Divina de Amon (Rainha do Egito). 2) Sha-Amun-En-Su, cantora do Templo de Amon em Tebas, que auxiliava a Esposa Divina de Amon em suas funções ritualísticas na 22ª Dinastia (cerca de 750 aEC). 3) Harsiese, da 26ª Dinastia (cerca de 650 aEC), também foi um alto funcionário na região tebana. 4) Finalmente, a “múmia feminina” que não tinha seu esquife para identificá-la e viveu provavelmente no século I aEC.

Recentemente, a equipe de pesquisadores do Museu Nacional estudou múmias utilizando tecnologias da medicina moderna como tomografia computadorizada com escaneamento em 3D de cada uma de suas camadas. A múmia de Sha-Amun-en-Su era de grande interesse à Egiptologia por ser uma das poucas no mundo que continuavam intactas dentro do esquife. Ela estava intocada, inclusive com seus amuletos colocados nas partes do corpo em que se encobria com encantamentos mágicos para protegê-la no além-vida. Um feitiço que durou quase 3 milênios, até o fatídico 2 de setembro de 2018, quando o Museu Nacional pegou fogo.

O acervo egípcio após o incêndio

Ainda não foi autorizado pela perícia o processo de salvamento das peças, pois os bombeiros estão investigando as causas que levaram ao incêndio. Existe a esperança de que artefatos de pedras como estátuas, estelas, shabits e vasos canópicos estejam ao menos parcialmente preservados. Dificilmente as múmias estarão inteiras. Em função da comoção gerada pelo incêndio, acredita-se que novas peças possam ser doadas ou adquiridas para se montar uma nova coleção.

O acervo egípcio do Museu Nacional era reconhecidamente o maior da América Latina, internacionalmente respeitado. Agora, resta no Brasil o pequeno acervo egípcio do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP em São Paulo e as poucas peças originais no Museu Egípcio Rosacruz em Curitiba. O fato é que este desastre foi sentido por toda Egiptologia internacional.
Justamente no ano em que o Egito inaugurará o maior museu do mundo dedicado a uma única civilização, com as mais modernas tecnologias empregadas. O antigo Museu do Cairo era objeto de críticas por mais parecer um depósito de peças. Mas agora, o novo Museu, de dimensões faraônicas, mostrará ao mundo a importância que esta civilização teve no desenvolvimento da humanidade. Uma lição que o Brasil pode extrair para preservar melhor sua própria memória.

A importância do Antigo Egito para a humanidade

Se ainda resta alguma dúvida sobre a importância de se estudar o Antigo Egito, vale lembrar que eles foram o primeiro Estado a identificar-se com território e povo, muito antes de existir o que hoje chama-se “nação”. Tinham uma economia estatizada, forte e centralizada, um mercado interno e um comércio exterior integrado na geopolítica e nas rede caravanas e navegações da África, Mediterrâneo e Oriente Médio. Foram capazes de comandarem economicamente o desenvolvimento das forças produtivas materiais, tendo a máxima expressão na arquitetura com pedras, realizando “obras faraônicas” como pirâmides, palácios, templos colossais e cidades meticulosamente planejadas que eram erguidas e reerguidas no meio da paisagem. Produziram papiros, tinturas, metalurgia, barcos, carros de guerra, armas, tecidos, estatuária, cervejas, vinhos, pães e diversos tipos bens de consumo. Circunavegaram a África 2 mil anos antes dos portugueses e espanhóis.

Desenvolveram áreas do saber que hoje chamamos de matemática, geometria, gramática, história, geografia, química, biologia, medicina, engenharia, arquitetura e astronomia. Do ponto de vista teológico, as religiões judaica, cristã e islâmica beberam da fonte mitológica, literária e dos livros de sabedoria dos egípcios.

Grandes pensadores gregos como Pitágoras, Heráclito e Platão iam da Grécia, ainda pouco expressiva e em processo de formação cultural, ao glorioso Egito dos faraós, referência das antigas sabedorias. Com o casamento da cultura greco-helenística com a egípcia, surgiu a Escola e Biblioteca de Alexandria. Lá, descobriram que a Terra era redonda, que a órbita dos planetas era elíptica e desenvolveram tanto a teoria geocêntrica quanto a heliocêntrica. Foram ainda os criadores da escrita que inspirou o primeiro alfabeto e criaram tradições literárias próprias que influenciaram diversos outros povos. Vale atentar-se que o Egito Antigo foi uma civilização africana.

Por tudo isto que Dom Pedro I e Dom Pedro II admiravam tanto o Antigo Egito. O mesmo ocorreu com Juscelino Kubtischek quando visitou as ruínas da cidade egípcia de Amarna, onde sonhou um dia ser um chefe de Estado capaz de construir uma capital numa área virgem. Inspirado na arqueoastronomia egípcia, o Plano Piloto de Brasília, criado por Lúcio Costa, é orientado para o Sol. O prédio do Congresso Nacional alinha-se com o Oriente onde nasce o Astro Rei nos solstícios e equinócios. O mausoléu de JK está no Ocidente, na direção onde os egípcios costumavam sepultar seus mortos. Ele tem o formato de uma mastaba, como faziam os primeiros faraós, antes da era de ouro das Pirâmides ou das tumbas cavadas nos montes do Vale dos Reis.

Conclusão

Por mais que o Antigo Egito pareça uma civilização distante, seu legado influenciou a própria criação do Estado brasileiro no processo de consolidação da Independência. O ideal imperial, inspirado no Antigo Egito faraônico, norteou muitas civilizações. Ironicamente, o mesmo imperialismo que surgiu no Oriente Médio antigo, ao se tornar o projeto de potências europeias capitalistas, levou ao saque e à pilhagem dessas civilizações como forma de legitimar os regimes.

Para que esta área do conhecimento científico, tão pouco desenvolvida no Brasil tenha um futuro de resplendor, é preciso recuperar as peças que forem possíveis e construir uma campanha internacional para formar um novo acervo no Museu Nacional. Que este desastre ao menos tenha servido para se ganhar corações e mentes da população e das autoridades brasileiras para a importância dos museus e da preservação da memória coletiva de um povo.

Se existe um principal legado que os egípcios deixaram à humanidade é o do entendimento do significado da imortalidade. Na visão egípcia, algo só morre de fato quando deixa de ser mencionado. Portanto, preservar a cultura material e os documentos escritos é uma forma de garantir a imortalidade de cada período da história mundial e do Brasil. Para que no futuro entendamos o passado o que levou à formações do presente.

Os dados citados foram extraídos dos sites:

http://www.museunacional.ufrj.br/
http://www.seshat.com.br/
http://revistapesquisa.fapesp.br/2014/01/13/o-ultimo-ato-da-favorita-imperador/

Referências

ROMER, John. O Vale dos Reis.
SHAW, Ian. The Oxford History of Ancient Egypt.
WILKINSON, Tobby. The Rise and Fall of Ancient Egypt.