Juliana Diniz: Exilados sobre as cinzas

“Terra de seres humanos, sem memória ou caminho que conduz a sua ancestralidade incinerada. Incapazes de detectar qualquer mudança na geografia dos seus gestos, suas práticas, imperfeições ou núcleos. Terra de bichos sem história, os analfabetos do seu destino”.

Por Juliana Diniz*

Museu Nacional - Carl de Souza

As damas arderam em meio ao fogo como bruxas queimadas pelo Santo Ofício.

Quis o destino que no domingo, dia grave e santo, e à noite, para que as luzes possam iluminar-se como sombras e como caras de espanto.

Consumiu-se tudo.

Amanheceram as cinzas ainda aquecidas, um fuligem turvando o ar em suspenso. As paredes de preto erguem-se para o céu como os braços desesperados em prece, mas Deus está silente. Também o registro de suas próprias vozes se perdeu no fogo. O palácio do império é um esqueleto de esquadrão, não sustenta um teto ou guarda qualquer de seus pavimentos, suas paredes desnudas apenas demarcam vãos recobertos por escombros, como entradas expostas ao ar livre.

O inferno é um lugar silencioso, onde não há alternativa ou esperança.

Pelo chão, restos de múmias, as pessoas se enfeitam com borboletas de borboletas que já não estão, estão como lembranças de cor. Um meteorito repousa em meio ao meio de ossos de bichos imensos. As pedras preciosas do espaço não importam a iminência do fim. Matéria alheia à linguagem e aos homens.

Não há tempo para luto. Iniciados-se os trabalhos de inventariar como perdas de um povo condenado a viver como exilado na própria terra. Terra de seres humanos, sem memória ou caminho que conduz a sua ancestralidade incinerada. Incapazes de detectar qualquer mudança na geografia dos seus gestos, suas práticas, imperfeições ou núcleos. Terra de bichos sem história, os analfabetos do seu destino.

*Juliana Diniz é Doutora em Direito, professora da UFC e escritora.

Opiniões aqui expressas não refletem necessariamente as opiniões do site.