Cuba: nova Constituição para uma nova fase da revolução

Durante a eleição de Miguel Díaz-Canel como presidente do Conselho de Estado e Ministros da República de Cuba em abril passado, foi anunciado um processo de reforma constitucional que começou a tomar forma entre os dias 20 e 22 de julho, no marco do Primeiro Período Ordinário das Sessões da 9ª Legislatura da Assembleia Nacional do Poder Popular, que discutiu o Anteprojeto de reforma da Constituição promulgada em 1976, mas modificada posteriormente em 1978, 1992 e 2002 [1].

Por Arantxa Tirado

Havana - Divulgação

Entretanto, esta não é uma reforma a mais da Constituição cubana, mas trata-se – tal como advertiu um dos membros da Comissão de Reforma Constitucional, Homero Acosta – de formular “uma nova Constituição com alcance superior”, não uma mera reforma parcial da Constituição de 1976.

A magnitude deste processo aumenta porque se dá em um contexto politico inédito, depois da transmissão de poder gerada com a eleição de Díaz-Canel, o primeiro presidente cubano que não pertence à geração histórica de origem guerrilheira [2]. A nomeação de Díaz-Canel significou a substituição desta geração, que havia exercido as máximas funções de direção política na ilha deste o triunfo da Revolução em 1959, e que esteve personificada nas figuras de Fidel e Raúl Castro. Porém, na prática, a geração histórica segue mantendo relevantes posições de poder, tanto na direção política do Partido Comunista de Cuba (PCC), do qual Raúl Castro continua sendo o Primeiro Secretário, como no próprio Conselho de estado e de Ministros. Também presidiu o Grupo de Trabalho formado para elaborar o Anteprojeto de Reforma. A marca da geração histórica pode ser vista no modo como está sendo levado a cabo o processo de reforma constitucional, com um relativo hermetismo sobre as intenções do Estado ou a finalidade da reforma, mais além das declarações genéricas que definem a atualização da Carta Magna para adaptá-la a uma realidade da sociedade, à política e à economia cubanas, muito diferentes de 1976, e relativamente flexível diante das eventuais necessidades futuras.

Certamente, trata-se de uma reforma constitucional que inclui algumas modificações qualitativas em matéria de fundamentos e princípios econômicos-políticos do Estado, em termos de direitos humanos e garantias, assim como no que diz respeito à organização estatal. Ainda que haja artigos denominados “pétreos”, que têm a ver com o sistema político-social e econômico revolucionário, não vai mexer na essência socialista, ou com a direção política do PCC, que tampou será substituído, sim, foram estabelecidos certos “ajustes” a estes elementos e ao texto em geral, que passará a ter também novos artigos e títulos.

Algumas das mudanças que geraram maior repercussão são relativas aos direitos de propriedade; a modificação do artigo 5 substituiu os “altos fins da construção do socialismo e o avanço até a sociedade comunista” por “a construção da sociedade socialista”, suprimindo a alusão ao avanço até o comunismo na proposta da nova Constituição. Com relação à ampliação de liberdades e direitos, o novo texto inclui possibilidade de reconhecimento no futuro do casamento igualitário entre pessoas do mesmo sexo ou incorporação à Constituição de “habeas corpus”, entre outra variedade ampla de direitos. Cada um destes pontos foi debatido não só em termos jurídicos, mas também políticos, argumentando a razão de sua inserção ou exclusão diante das dúvidas ou questionamentos de alguns deputados e deputadas nas várias comissões. Os debates, que foram transmitidos em tempo real em distintas plataformas virtuais, dão conta dos diferentes focos e de um debate plurar que seguirá nos próximos meses, pois depois da aprovação do Antiprojeto de maneira unânime por parte da Assembleia Popular, o texto toma forma de Projeto de Constituição que deve ser submetido à consulta popular a partir de 13 de agosto até 15 de novembro.

Posteriormente, passará de novo pela Assembleia que deverá incluir as propostas realizadas pelo povo cubano e fazer uma “segunda leitura”. Depois deste processo, está prevista sua votação em referendo, através do qual Acosta afirmou “estamos convertendo todo o povo em constituinte”.
Cuba passará a ser um “Estado socialista de direito”, um conceito novo no constitucionalismo cubano e ausente nas experiências do socialismo real.

O comentário de Acosta tem relação com o questionamento proveniente de certas vozes sobre a idoneidade ou não de proceder a uma reforma constitucional sem a convocatória de uma Assembleia Constituinte [3]. Se bem que a possibilidade de a Assembleia exercer a função de constituinte esteja assegurada no artigo 137 da Constituição de 1976, o que outorga atribuições constituintes aos parlamentares, a interpretação deste artigo não é unânime e há quem questione a falta de convocatória ex profeso de uma Assembleia Constituinte tal e como foi feito em outras experiências recentes do constitucionalismo latino-americano (em especial nos casos venezuelano, boliviano, equatoriano, dos quais os constituintes cubanos se declararam inspirados, além de outros constitucionalismos africanos e asiátaicos).

Ainda que o texto do Antiprojeto, já Projeto de Reforma, não tenha sido publicado, enquanto escrevo estas linhas, pode-se deduzir – a partir dos debates – uma série de transformações que sem dúvida terão um impacto significativo na ordem jurídica e política cubana. Para começar, Cuba passará a ser um “Estado socialista de direito”, um conceito novo no constitucionalismo cubano e ausente nas experiências do socialismo real. A propriedade socialista de todo o povo seguirá sendo o núcleo do sistema econômico e político, mas se dará status constitucional ao reconhecimento da propriedade privada já existente no país. O mesmo acontecerá com o investimento estrangeiro. O modo com que se regularão estes dois elementos, assim como outros temas colaterais como a concentração da propriedade e a repartição da riqueza, o trabalho por conta própria, etc., ficará para desenvolvimentos normativos posteriores, pois a Constituição é concebida como uma norma de mínimos. Por outro lado, é de se destacar a ampliação de direitos que postula o Projeto, como, por exemplo, substituir a “liberdade de palavra e imprensa conforme os fins da sociedade socialista” pela fórmula mais ambígua que garante a “liberdade de reunião, manifestação e associação com fins lícitos”. Se prevê, desta forma, a limitação de mandatos e um topo de idade de 60 anos para chegar a exercer o cargo de Presidente da República. Estes exemplos são só alguns das múltiplas mudanças que apresenta o Projeto de Reforma Constitucional e que, em alguns casos, marcam modificações simbólicas, mas, em outros, trata-se de modificações de grande impacto político.

Em que medida estas mudanças simbólicas e substanciais são uma concessão dos princípios socialistas que podem derivar em um cenário pós-revolucionário ou, pelo contrário, são uma mera adaptação léxica às transformações que já vem acontecendo na sociedade cubana há vários anos mas estão encaminhadas a preservar a vigência da Revolução, é uma questão sujeita a debate. De qualquer forma, convém não esquecer que se trata de um debate aberto que se dá também no seio da sociedade cubana. Nela existem opiniões e interesses diversos, muito distantes da imagem de “ditadura de pensamento único” que os meios de comunicação hegemônicos sempre querem transmitir da Revolução cubana. Por ora, é o povo cubano quem tem a palavra para fazer propostas, alegações ou modificações no Projeto de Reforma. E, se há dúvidas sobre a reforma constitucional ser uma ruptura com a revolução, esta será respondida a partir de 13 de agosto, aniversário de nascimento do comandante em chefe da revolução, Fidel Castro.

Notas

[1] http://www.cubadebate.cu/cuba/constitucion-republica-cuba/
[2] http://www.celag.org/cuba-un-nuevo-presidente-para-continuar-la-revolucion/
[3] https://oncubamagazine.com/sociedad/significa-una-asamblea-constituyente-i/