Jurista rebate Dodge: Quem prevaricou foi Moro, e não Favreto

A procuradora-geral da República, Raquel Dodge, pediu ao Superior Tribunal de Justiça abertura de inquérito contra o desembargador Rogério Favreto, do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, sob o argumento de que o magistrado pode ter cometido ato indevido de ofício para satisfazer a interesse ou sentimento pessoal, ou prevaricação.

Por Dayane Santos

Afrânio Jardim - Reprodução

A tese de “prevaricação” foi lançada pela grande mídia como argumento para desqualificar a decisão de Favreto. Segundo a procuradora, o desembargador foi “movido por sentimentos pessoais” quando mandou soltar o ex-presidente Lula, no domingo (8). Ela diz que a atuação do desembargador consistiu num episódio atípico e inesperado que produziu efeitos nocivos sobre a credibilidade da justiça e sobre a higidez do princípio da impessoalidade, que a sustenta.

No entanto, na peça de 21 páginas produzida e apresentada por Dodge ela omite totalmente a atuação do juiz Sergio Moro, da 13º Vara Federal de Curitiba, que sem competência para agir, pois era o juiz de primeiro grau e de férias em Portugal, atuou para impedir a execução da decisão, afrontando a hierarquia do Supremo e fabricando o impasse.

Moro, que não tinha qualquer jurisdição no caso porque o processo já estava em segunda instância, decidiu que não devia ser cumprida a decisão do desembargador Favreto e mais: orientou a Polícia Federal a não cumprir.

Para o ex-conselheiro do Conselho Nacional de Justiça, José Norberto Campelo, admitir que um juiz de primeiro grau imponha sua vontade pessoal em detrimento de uma decisão judicial proferida por órgão superior “é algo muito grave que jamais poderá ser admitido”.
“Órgão inferior na estrutura do Judiciário não tem nenhum poder de revisão ou crítica das decisões proferidas por órgão superior, cabendo-lhe apenas o cumprimento, a não ser que haja absoluta impossibilidade material, o que deve ser informado ao prolator da decisão, motivadamente”, afirmou Norberto.

Ele aponta ainda que o impasse gerou “de modo esdrúxulo” duas decisões no mesmo habeas corpus, sendo uma por Favreto, desembargador plantonista e único competente para atuar durante o plantão, e outra pelo desembargador-relator Gebran Neto, neste caso a quem seria dirigido o pleito logo no primeiro dia útil após o plantão.

“Ocorre que a jurisdição pertencia ao plantonista até o término do seu plantão e, portanto, mesmo sendo o prevento para apreciar o pedido no expediente normal, decidindo o feito ainda durante o plantão, usurpou da competência do magistrado plantonista”, explica o advogado, apontando que para manter Lula preso, o desembargador atropelou o processo e a competência.

“Tenho para mim que sua decisão [do desembargador Gebran] é ato inexistente, porque proferido em momento em que não dispunha de competência para fazê-lo. Essa decisão se constitui em ilegalidade grave e patente e não poderia jamais ser praticada, mesmo que o objetivo fosse a ‘correção’ de um ‘erro’ cometido pelo desembargador plantonista”, frisou.

Segundo ele, a sequência de atropelos feitos para barrar a decisão do desembargador Favreto, inédita no Brasil, “criou sérias dificuldades para o tribunal, que não a queria cumprir”. Na decisão de Favreto, ele fundamenta que, no habeas corpus levado a ele, foi apresentado um fato novo: Lula havia se declarado oficialmente pré-candidato à Presidência da República. Como seus direitos políticos não estavam suspensos e a prisão o impedia de exercer sua pré-candidatura, Favreto mandou soltá-lo.

“Favreto não pode ter um pensamento jurídico diferente do juiz da Lava Jato?”, questionou a deputada federal Jandira Feghali (PCdoB-RJ), em discurso na tribuna da Câmara nesta quarta-feira (11). “O juiz Favreto continuará tendo o nosso apoio porque ele não agiu politicamente, mas a partir de sua visão constitucional e jurídica e tem o direito de tê-la. Não há um pensamento único na justiça, mas o pensamento da lei e da Constituição”, argumentou.

Para Dodge, o desembargador não tinha competência para praticar os atos que desrespeitaram a ordem jurídica, pois “pautou-se em premissas notoriamente artificiais e inverídicas”.

Sem fundamento para acusar Favreto

Desde o domingo, diversos juristas, advogados e professores de Direito têm abordado o assunto e a grande maioria aponta que a decisão de Favreto é subjetiva, ou seja, depende da convicção de cada um e como o desembargador estava exercendo a sua competência como juiz da causa, o máximo que se pode apontar é um erro. Por outro lado, não há dúvida de que a conduta de Sergio Moro e do desembargador relator João Gebran Neto violou a competência do magistrado com interesse de manter Lula preso.

O professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), Afranio Silva Jardim, considerado no mundo acadêmico como um dos mais importantes processualistas penais brasileiros, disse em entrevista ao Portal Vermelho que a acusação de prevaricação não se sustenta.

“Isso dificilmente pode ser aplicado ao ato jurisdicional na medida em que a decisão do desembargador Favreto pode ser questionada como todas as decisões jurídicas. A decisão não é ilegal e ele tinha competência, não tenho dúvida. Quem não tinha competência para praticar nenhum ato processual era Sergio Moro e Gebran. Decidir se ele julgou certo ou errado é uma questão de mérito”, afirmou Afranio, destacando que o fato de um juiz errar no mérito não quer dizer que esteja prevaricando.

O jurista lembrou que a reforma de decisões é ato comum do sistema judiciário. “Inúmeras sentenças e decisões de juízes são reformadas pelos tribunais e nem por isso quer dizer que o juiz que teve a sua sentença reformada tenha prevaricado”, advertiu. “Agora, acho razoável dizer que Gebran e Sergio Moro prevaricaram porque foram formalmente ilegais, na medida em que os atos que praticaram estavam totalmente fora da sua competência porque um estava de férias e outro estava de folga em casa. Favreto tinha competência de mérito”, completou.

Sobre a acusação da mídia e encampada por Dodge de que os deputados Paulo Pimenta (RS), Paulo Teixeira (SP) e Wadih Damous (RJ), este último ex-presidente da OAB-RJ, autores do pedido de habeas corpus, orquestraram com Favreto a ação para libertar Lula, Afranio também considera que é um argumento sem fundamento.

Até um estagiário de direito sabe que é normal advogados esperarem o plantão de um determinado juiz que que lhe parece mais favorável para pedir as medidas de urgência ou cautelares. “É muito comum e uma estratégia da advocacia que não é ilegal nem antiética. Todo advogado faz. Estando o Moro de plantão, a direita iria postular e a esquerda não”, ironizou Afranio.

A tese da Rede Globo é apenas baseada na trajetória de vida do desembargador que ocupou cargos em gestões petistas na Prefeitura de Porto Alegre e nos governos dos ex-presidentes Lula e Dilma Rousseff. “É notório as estreitas ligações afetivas, profissionais e políticas do desembargador com o réu. Assim, ele determinou a soltura sem ter jurisdição no caso, apenas com a finalidade de satisfazer interesses pessoais”, concluiu Dodge.

Segundo Afranio, há diversos juízes, desembargadores e até ministros com relações estreitas com lideranças de partidos políticos e até mesmo com filiações antes de ocuparem o cargo. “O ministro Alexandre de Morais, até pouco tempo, era do PSDB, foi secretário de Segurança de São Paulo, ministro da Justiça no governo de Michel Temer. Está vinculado politicamente”, citou o professor para demonstrar que apesar dessa relação, o ministro com estreitas relações com o tucanato não tem suas decisões colocadas sob suspeita.

“O Paulo Brossard, que foi um bom ministro do Supremo, era um político filiado a partido. Assim como o ministro Nelson Jobim, que foi do MDB e ocupou a Presidência do Supremo. É normal pois, evidentemente, quem indica os ministros e desembargadores são pessoas da esfera política. Faz parte do jogo de poder e é da democracia. Donald Trump, por exemplo, escolheu um ministro conservador para a Suprema Corte norte-americana. Ele iria escolher alguém ligado aos democratas? Jamais”, argumentou o professor, que lembrou que o pai de Thompson Flores, atual presidente do TRF-4, foi ministro do Supremo e escolhido por suas opções políticas.

Quando pedimos para Afranio comparar as condutas de Moro e Favreto, o jurista aponta que são notórias as violações e abusos cometidos pelo juiz de primeiro grau de Curitiba. “Se há alguma aparente tipicidade nas hipóteses na atuação vamos encontrar em relação à atuação já notória do juiz Sergio Moro, dando publicidade a gravações que estavam sob sigilo, gravações privadas que não tinham interesse processual, gravações feitas depois do tempo permitido e em escritórios de advocacia”, lembrou.

Afranio demonstrou que não tem expectativa de que o atual sistema judiciário venha corrigir os que ele classifica como “notórios absurdos”. “Estamos numa linha de desespero, porque a própria comunidade acadêmica tem se posicionado, mas nada é eficaz. Com esse Judiciário e Ministério Público Federal que temos – que não ouvem e não querem ouvir – parece que as vias institucionais estão cada vez mais se fechando e isso é perigoso para a democracia”, avalia.