Viagem na irrealidade econômica

Leio na Folha de S.Paulo, edição de domingo 27 de maio, instigante interpretação do movimento paredista dos caminhoneiros.

Por Luiz Gonzaga Belluzzo

Caminhoneiros - Foto: Vitor Jubini

Tal como os motoristas amadores que se lançam ao volante nos Dias do Senhor, o articulista domingueiro virou o volante de forma ousada e atropelou o debate: “Logo após a crise de 2009, os formuladores de política econômica passaram a estimular a compra de caminhões com empréstimos subsidiados do BNDES."

Continua: "Achava-se que seria política contracíclica eficaz para ajudar a economia a sair da crise iniciada em 2008. O programa de crédito muito barato persistiu até o primeiro mandato da presidente Dilma. De 2009 até hoje, a frota de caminhões aumentou 40%. A economia, no mesmo período, cresceu 11%. Não havia necessidade de tanto caminhão. Evidentemente, o excesso de oferta de caminhões pressiona o frete para baixo”.

Na manobra argumentativa do domingueiro, a economia brasileira saltou de 2009 para 2018, sem atravessar o período de 2010 a 2017. Um prodígio da Teoria Econômica da Rigidez Cadavérica.

Há quem rejeite a necropsia como método de investigação e examine o organismo econômico em seus movimentos. E pur se muove: entre 2012 e 2014, a economia brasileira sentiu os efeitos da desaceleração do ciclo expansivo que a beneficiou desde 2004.

Nesse período, o governo da presidenta Dilma cuidou de conceder isenções fiscais para a turma do Pato, retardou o programa de concessões e segurou o realinhamento de preços administrados, aí incluídos os derivados de petróleo.

No crepúsculo de 2014, os formadores da opinião midiático-financeira instilaram a pré-verdade econômica nos ares de Pindorama. A economia cresceu apenas 0,5% e apresentou um déficit primário de 0,6% do PIB em 2014. O domingueiro e sua turma propalavam o desastre.

A vitória de Dilma nas eleições aumentou a gritaria: desastre!, desastre! Tanto clamaram pelo desastre que a política econômica dos domingueiros foi executada com esmero pelo ministro Joaquim Levy. Dois anos depois, os incautos e crédulos descobriram que a caixinha da turma era a de Pandora.

Aberta a caixinha, os monstros ficaram à solta: o choque de tarifas voou lado a lado com o choque de taxa de juros de mãos dadas com a forte desvalorização cambial. Para não deixar barato, os preços desaforados convidaram os cortes em investimentos públicos para mais um baile da Ilha Fiscal.

A interação entre o choque de tarifas, a subida da taxa de juros, a desvalorização do real e o corte dos investimentos públicos determinaram a elevação da inflação em simultâneo à contração do nível de atividade e daí à restrição do crédito. Entre 2015 e 2016, o PIB despencou 6,9%.

O encolhimento do circuito de formação da renda levou, inexoravelmente, à derrocada da arrecadação pública. Ancorada na queda do PIB, no choque favorável dos preços de alimentos, na exaustão do choque de preços administrados, a inflação despencou. Os méritos foram concedidos à política de metas do dr. Ilan.

As noções elementares a respeito das relações entre investimento, produção, consumo e formação da renda sugerem que a política de austeridade dos domingueiros jogou a demanda de fretes no buraco. Caminhões de mais para demanda de menos. Ou seria demanda de menos para caminhões de mais? Dúvida cruel à espera de uma regressão salvadora.

Nesse panorama, não há como descartar a análise de José Sergio Gabrielli: “No mercado em queda, a Petrobras perde mais aceleradamente sua participação no mercado, dando espaço para os importadores e aumentando a sensibilidade dos preços internos às variações internacionais, com o objetivo de criar um ambiente propício para a venda de parte do parque de refino da empresa. Troca-se a estabilidade de uma empresa integrada, que atua ‘do poço ao posto’, para fazer caixa no curto prazo com a venda de seus ativos, de forma a acelerar o pagamento das dívidas e dividendos”.

No meio do caminho, ou dos caminhões, havia uma pedra. Em meados de 2016, o gestor da Petrobras, Pedro Parente, deflagrou a política “realista” de ajustamento quase diário dos preços aliada à estratégia privatista da venda de ativos para agradar ao curto-prazismo dos mercados financeiros. Manda quem pode, obedece quem tem prejuízo.

O “realismo” dos reajustes quase diários dos preços, a volatilidade e a desmobilização das refinarias convidaram os caminhoneiros a experimentar, com Umberto Eco, as incertezas da Viagem na Irrealidade Cotidiana. Em se tratando de um insumo estratégico de uso universal, não raro a busca microcéfala da eficiência micro desarranja o conjunto das relações que configuram o ambiente macroeconômico.