As narrativas em torno da “greve” dos caminhoneiros

“O que começou como um movimento legítimo pode trazer outras leituras de compreensão dos fatos, com um sintoma de como podemos construir leituras da realidade brasileira.”

Alexandre da Maia*

greve caminhoneiros - Foto: Mauro Pimentel/ AFP

Vimos nos últimos dias uma alardeada paralisação de caminhoneiros no Brasil todo. Com a divulgação incessante do movimento pela grande imprensa, houve a cristalização da narrativa de greve dos motoristas responsáveis pelo transporte dessas cargas pelas rodovias brasileiras, o que teria gerado o deficit de abastecimento de mantimentos no comércio e falta de combustíveis para abastecimento de carros, motos e aviões. Mas o que começou como um movimento legítimo pode trazer outras leituras de compreensão dos fatos, com um sintoma de como podemos construir leituras da realidade brasileira.

O que se pretende neste texto é apresentar as múltiplas formas de compreensão dessa situação apresentada pela grande mídia como caótica e, por conta da prevalência dessa forma de entender o problema em detrimento de outras variáveis, muitas vezes imprevisíveis, a narrativa termina por condicionar os corpos e as mentes, obscurecendo a discussão de outras possibilidades, sobretudo num contexto político, econômico, jurídico e social em que os horizontes de expectativas podem (eu disse “podem”) estar suscetíveis a rupturas em sua dinâmica interna.

A alardeada falta dos produtos condicionou corpos e mentes de maneira a produzir uma incessante procura gerada pelo medo da falta, para além da própria escassez, mola motriz da economia de mercado. A operação que constitui a escassez é entendida como “acesso a uma quantidade sob a condição de que tal acesso limite novos acessos. Com isso, o aceso produz escassez, enquanto que, por sua vez, a escassez funciona como motivação para o acesso”, como afirma Niklas Luhmann em A Economia da Sociedade. E o sistema econômico precisa da escassez para construir novas expectativas para mover sua dinâmica interna. No caso dos combustíveis, a narrativa foi além da escassez, pois rompeu a previsibilidade do acesso por conta da “greve”, o que gerou um frisson na luta por gasolina e álcool, provocando uma diminuição da oferta, a despeito de uma demanda cada vez mais intensa.

O resultado foi a disparada dos preços – em que um posto de combustível da Zona Sul do Recife chegou a vender o litro de gasolina comum, no dia 23 de maio de 2018, ao preço de R$ 8,999 – com a redução drástica de transporte público nas ruas e a suspensão de atividades acadêmicas nas universidades e instituições de ensino em geral. Enquanto escrevo este texto, há filas quilométricas nos postos que ainda têm combustíveis no estoque. Na cadeia produtiva dos alimentos, algumas redes de supermercado estabeleceram limites quantitativos de compra por consumidor, por conta da demanda dos clientes pela compra de mantimentos para estoque caseiro.

A narrativa alardeada na grande mídia envolve os interesses legítimos dos caminhoneiros, sobretudo em relação às suas pautas, como aquelas relacionadas, por exemplo, ao valor do frete por eles recebido. Parece claro que essa reivindicação é própria da atividade de quem faz o transporte rodoviário de cargas e tem por objetivo melhorar a qualidade de vida de profissionais que são de fato sacrificados em seu ofício. Muitas vezes contratados de forma autônoma ou agregada, com pressão para entrega rápida das mercadorias em um país de dimensões continentais e em uma situação de total insegurança no trabalho.

Mas é possível, por outro lado, a utilização de um movimento inicialmente legítimo para que o empresariado, na busca dos seus interesses, use a retórica do medo relacionada à falta de abastecimento de víveres e combustíveis para inserir nas pautas reivindicatórias da paralisação elementos que beneficiam exclusivamente as empresas, não os caminhoneiros. Nessa situação, a “greve” se transmuta em um “lockout”, quando os empresários, como forma de conseguir viabilizar seus desejos frente a um governo fraco, como é o caso, impedem os trabalhadores do exercício de seu mister, que, no caso específico dos caminhoneiros, tem o potencial de parar o país.

Por conta da contratação de caminhoneiros autônomos e agregados, a relação de dependência dos acordos (inclusive os tácitos) nesses casos é maior, e uma leitura possível do problema envolveria a absorção, como reivindicação dos “grevistas”, da redução dos impostos, algo que envolve sobretudo a atividade econômica do empresário, pois a política de aumento de preços já teria sido internalizada na vivência e nos gastos do consumidor, e a redução da carga tributária não implicaria a diminuição do preço do produto na venda de varejo.

A medida adotada pelo atual presidente da Petrobras, Pedro Parente, ao determinar a redução de 10% no valor do diesel nas refinarias por 15 dias, atende a um anseio dos grupos econômicos do setor. Primeiro, porque o diesel é usado para alimentar o funcionamento das máquinas e das estruturas de produção; segundo, porque as empresas podem comprar o óleo mais barato, a fim de fazer a mistura que será comercializada ao final da cadeia produtiva em forma de biodiesel, o chamado B-100. Por esse ponto de vista, o que começou como greve foi cooptado como “lockout” para pressionar o governo a ceder a interesses do setor, não dos caminhoneiros.

Outra narrativa sobre o mesmo fenômeno consiste em afirmar que certas lideranças dos movimentos dos caminhoneiros fazem ecoar propostas para além do movimento, com pretensões de afirmação de ideais conservadores ligados ao direito ao porte de arma para defesa, redução do preço dos combustíveis aos praticados na Bolívia e, pasmem, cumprimento integral da lei do voto impresso, em plena era das urnas eletrônicas. Essas pautas parecem conectadas, por tal narrativa, a um pré-candidato à Presidência da República, buscando identificar no movimento de “greve” uma tendência política de afirmação de um modelo político de extrema direita, alinhado a alguns sindicatos e a estruturas religiosas neopentecostais, já tão arraigadas à nossa dinâmica de poder. Eduardo Cunha e Marcelo Crivella não nos deixam mentir, para citar alguns dos mais proeminentes. Neste caso, é como se estivéssemos diante de uma demonstração no espaço social de força de setores apoiadores do tal candidato de extrema direita nas eleições previstas para outubro de 2018.

Ainda no plano da possibilidade de ver a “greve” como espaço retórico de manipulação política, teríamos setores do movimento, inclusive lideranças, que usam o espaço para pedir o retorno da ditadura militar. Uma das lideranças do movimento em São Paulo aparece em vídeo que circula no Facebook entoando o discurso moralista que busca justificar, a partir da paralisação, a necessidade de ruptura democrática pelo uso da expressão “intervenção militar”. Em bom português, a “greve” seria o processo capaz de desencadear outro golpe civil-militar e o fim da democracia, com a velha cantilena de sempre em que todos são corruptos e que só o golpe seria capaz de promover a “limpeza geral” no plano da política. O “ódio à democracia” em sua quintessência.

Outra forma de ler o mesmo problema é que o mencionado “lockout” não aconteceria sem o apoio dos empresários e do próprio governo. Caminhoneiros sozinhos só conseguiriam essa “proeza” com o background do governo em conluio com seus empresários do setor, de modo a gerar a sensação de caos para uma intervenção mais drástica com o auxílio da caserna. Claro que não é possível prever todas as possibilidades e imaginar os desdobramentos, sempre contingentes, de um movimento como o que acontece agora, mas para Temer, com seu governo desidratado e popularidade a zero kelvin, uma intervenção mais pesada não seria necessariamente uma negociação para uma tomada de poder pelos militares, mas a decretação, frente ao “caos”, do Estado de Sítio, com o devido apoio do Congresso, dos setores das Forças Armadas ligadas ao Executivo e dessas forças sociais que desejam “ordem e progresso”. Aí, bye bye eleições. E o pior: a suspenção das garantias constitucionais na vigência do Estado de Sítio.

Neste caso, estaríamos diante de mais uma medida de exceção – não podemos esquecer a intervenção federal na segurança pública do Rio de Janeiro, tampouco o próprio impeachment e a trama que deu origem ao governo Temer – como um desmembramento, talvez em princípio não imaginado, no “script” do golpe, já que o candidato de quem está no Planalto não consegue se viabilizar do ponto de vista eleitoral. Lula foi preso, mas não perde popularidade. A Lava Jato prendeu o triunvirato do primeiro governo Lula, mas nem a esquerda perde força, nem a centro-direita consegue hidratação eleitoral. Tudo parecia bem estruturado, mas esqueceram de combinar com os russos. E quem tomou o butim – sobretudo nas condições e da forma como sabemos que aconteceu – não quer largar o osso só por causa de um fator de menor importância para os palacianos: o “povo”. Afinal, povo para quê?

Todas as narrativas trazidas acima mostram que estamos diante de um problema complexo, e que não há como extrair de situações sociais tão plurais relações de causa e efeito, mas caminhos de compreensão possíveis, que não são necessariamente excludentes e opostos pelo vértice. Compreender o Brasil de hoje, ainda mais no calor dos acontecimentos, requer a capacidade de vislumbrar as múltiplas conjecturas. Como tais, convém não as adotar como certezas de forma peremptória, tampouco descartá-las sem levarmos em consideração seus limites e possibilidades.