A greve dos caminhoneiros e o liberalismo

Em larga medida, a crise atual é também fruto da estupidez de todos os governantes, de todos os partidos, que investiram primordialmente em rodovias em um País de dimensões continentais, uma opção que não teve um centímetro de “técnica” e que atendeu apenas aos interesses das montadoras e das empreiteiras.

Por Marcos Rolim

Caminhoneiros - Foto: Vitor Jubini

Segundo os pressupostos mais caros do liberalismo econômico, leis que interferem no mercado violam a liberdade das pessoas. Mais do que isso, qualquer tentativa de regrar a livre troca de bens e serviços termina por afetar negativamente o bem-estar social. Estados intervencionistas, afinal, costumam ser ineficientes, tendem a premiar a incompetência e terminam por punir a sociedade como um todo. Nessas afirmações, sintetizo uma visão que tem, por certo, pontos de contato importantes com a realidade e que lida com problemas reais. O problema é o “pacote” e a carga ideológica pressuposta que obscurece um conjunto muito importante de dilemas morais e políticos. A atual crise de desabastecimento produzida pela greve dos caminhoneiros é, nesse particular, um dos momentos em que a vida real implode as doutrinas.

Os preços dos combustíveis no Brasil passaram a seguir as variações do mercado internacional, o que resultou em uma alta considerável e no protesto dos caminhoneiros. Preços públicos, por certo, não devem ser contidos artificialmente, mas governos podem mitigar efeitos adversos produzidos pelo mercado com políticas públicas que assegurem alternativas. No caso brasileiro, os programas de etanol e de biodiesel (que também reduzem a produção de gases de efeito estufa – GEE) seguem secundários e não há esforços efetivos em direção às novas tecnologias de automóveis movidos à eletricidade, por exemplo. Isso sem falar no crime praticado contra o Brasil, desde a ditadura, quando se iniciou o desmonte do modal ferroviário. Em larga medida, a crise atual é também fruto da estupidez de todos os governantes, de todos os partidos, que investiram exclusivamente em rodovias em um País de dimensões continentais, uma opção que não teve um centímetro de “técnica” e que atendeu apenas aos interesses das montadoras e das empreiteiras.

Lembrando: o presidente da Petrobras, Pedro Parente, declarou, sob o aplauso geral da banca, que “não haveria mais intervenção política na estatal”. O que a expressão “intervenção política” significa é coisa para se descobrir um dia. Dependendo do contexto, ela pode significar apenas “a partir de agora, o que conta são os interesses dos investidores”. Bastou os primeiros sinais de desabastecimento para que o governo Temer procurasse uma solução “política” para os preços. Os liberais, claro, mudaram de assunto.

O primeiro ponto a ter presente para se relativizar a abordagem do liberalismo econômico diz respeito aos nossos deveres morais. Michael Sandel inicia seu belo livro “Justiça, o que é fazer a coisa certa” (Civilização Brasileira, 350 p.), relatando alguns episódios que se sucederam após os estragos produzidos na Flórida pelo furacão Charley, em 2004. No auge de um tórrido verão, os moradores ficaram sem energia. Imediatamente, todos os serviços – incluindo aqueles fundamentais para os reparos às casas atingidas – passaram a custar uma exorbitância. Para retirar uma árvore que havia caído sobre uma casa, empresas especializadas cobravam 23 mil dólares. Pequenos geradores domésticos que custavam 250 dólares, passaram a ser vendidos por dois mil dólares. Os preços todos, inclusive o de gelo, água engarrafada e diárias de hotel, foram inflados pelo mercado que percebeu na gravidade das necessidades humanas uma oportunidade sem paralelo.

A população atingida pela tragédia considerou a atitude dos comerciantes locais uma manifestação intolerável de cobiça. Sua indignação tinha, portanto, uma base moral. Já os economistas liberais consideraram que nada havia de errado com aqueles preços. Se estavam altos, era porque o mercado os suportava e havia quem estivesse disposto a pagar. Para o liberalismo econômico, aliás, a ideia de “preço justo” não faz o menor sentido. Para os liberais, “criar regras para os comerciantes da Flórida não iria recuperar o estado, deixá-los trabalhar, sim”. O procurador geral da Flórida, entretanto, considerou que os preços eram inescrupulosos e que havia de se aplicar uma lei em vigor no estado contra preços exorbitantes. Seu argumento foi o de que, naquela situação, não havia “liberdade de mercado”. As pessoas simplesmente não tinham a liberdade de não adquirir os produtos, porque em larga medida dependiam deles para sua sobrevivência. Sequer havia uma situação de real competição no mercado. Segundo o procurador, para quem está fugindo de um furacão com sua família, o preço exorbitante pago pela gasolina ou por um abrigo não caracterizava propriamente uma venda, mas uma extorsão.

Sandel chama a atenção para as repercussões da polêmica. Com efeito, em situações tão graves como nos eventos trágicos, se espera que as sociedades se unam em solidariedade às vítimas, não que alguns especulem com a dor e o sofrimento. Também a ganância deve ter limites e permitir a exploração dos mais necessitados parece ser claramente uma violação moral. Isso significa que, quando se discute sobre leis e regras econômicas, estamos, ainda que não o reconheçamos, projetando uma posição a respeito da virtude.

O debate mostra claramente que, por mais liberais que sejam os compromissos de uma política econômica e por mais que se respeite o mercado, a dispensa de regulação ou a impossibilidade de intervenção do Estado assinalam riscos imensos que apenas os ingênuos e os muito espertos não estão dispostos a reconhecer.

(*) Doutor e mestre em Sociologia e jornalista. Presidente do Instituto Cidade Segura. Autor, entre outros, de “A Formação de Jovens Violentos: estudo sobre a etiologia da violência extrema” (Appris, 2016).