O nascimento de Marx e o destino da Rússia

Há duzentos anos nascia Karl Marx. Há 100 anos chegava ao fim a dinastia dos Romanov na Rússia. Os dois fatos guardam relação? Pode ser que sim, pode ser que não. Nestas breves linhas argumento que sim.

Por Ana Prestes*

Marx

 A existência de Marx e o desenvolvimento dos seus estudos sobre a humanidade e o capitalismo criaram mais possibilidades transformadoras do que ele mesmo foi capaz de supor. Aliás, seguindo sua teoria, as primeiras sociedades a serem emancipadas seriam aquelas em que o capitalismo estivesse mais desenvolvido, mas foi a Rússia czarista, agrária e subdesenvolvida que consagraria sua teoria de possibilidade real da busca humana pelo socialismo.

Quando Marx nasceu, em 1818, a Rússia havia há pouco saído das guerras napoleônicas e Moscou ainda se recobrava do incêndio auto provocado para derrotar as tropas de Napoleão. Mesmo derrotando Napoleão, o então czar Alexandre I não conseguiu impedir que as ideias francesas, especialmente as contrárias ao regime de servidão, penetrassem a Rússia, que então passaria a viver o último século antes da derrocada dos Romanov. Cem anos a separavam da vindoura Revolução de Outubro de 1917. Ao sucessor de Alexandre I, Nicolau I, caberia a tarefa de bloquear as ideias liberais que tentariam conquistar as mentes russas na primeira metade do século XVII. Assim Nicolau I ganhou o título de “guarda da Europa”, em especial por seu papel na derrota da Revolução Húngara de 1848.

Por essa e outras posturas do czarismo, Marx, já adulto e ativo estudioso das revoluções na Europa da metade do século, via o regime czarista como uma poderosa força contrarrevolucionária e uma ameaça real às revoluções europeias. Em grande parte de sua vida, Marx não viu com muita esperança a ação das forças sociais russas, apesar de ter lhe chamado a atenção o fim da servidão em 1861, por acreditar ser uma inflexão do regime frente à pressão dos camponeses. Marx não revelava muita esperança de que estes mesmos camponeses se voltassem no futuro próximo contra o Czar. Ele apostava mais no realinhamento das classes mais altas, como os proprietários de terras, ao serem influenciados por ideais liberais e progressistas em ebulição na Europa. Estes sim poderiam querer o fim da autocracia dinástica dos Romanov.

Mesmo após o fim oficial do regime de servidão, em 1861, os camponeses russos continuaram atados às terras pertencentes aos senhores dos quais anteriormente eram escravos. A liberdade não produzia alimentos e eles não tinham mobilidade, além de não terem como comprar suas próprias terras. Mesmo com a reforma, foi perpetuada uma pobreza servil que duraria ainda muitos anos. A vida dos camponeses passou a ser amaldiçoar os donos de terras, a polícia, governadores e funcionários locais, mas nunca o Czar. Marx estava correto, esta gente idolatrava o Czar que “infelizmente estava muito longe” e não conseguia amenizar este sofrimento. Marx vislumbrava que seria em Moscou, onde havia gente instruída e organizada em movimentos anarquistas inspirados em Proudhon e Bakunin, como o People’s Will, que por duas vezes tentariam assassinar Alexandre II, com êxito na segunda tentativa, que surgiria o movimento revolucionário na Rússia czarista. Seria um movimento liberal, republicano e capitalista.

No prefácio da segunda edição russa (1882) do Manifesto Comunista, Marx e Engels dizem:

O Manifesto Comunista teve como objetivo a proclamação da iminente dissolução da propriedade burguesa moderna. Mas na Rússia, face a face com a burguesia capitalista em rápido florescimento, junto com a propriedade burguesa, apenas começando a se desenvolver, mais da metade da terra possuída pelos camponeses é comum. Agora, a questão é: pode a comuna russa, embora muito enfraquecida, ainda uma forma de propriedade comum primordial da terra, passar diretamente para a forma mais elevada de propriedade comum comunista? Ou, pelo contrário, deve primeiro passar pelo mesmo processo de dissolução que constitui a evolução histórica do Ocidente?
 

Mais tarde, os primeiros russos a interpretar Marx, como Plekhanov e Lenin, iriam argumentar que o capitalismo nesta estava mais desenvolvido na Rússia do que Marx poderia supor. Um proletariado já havia surgido mesmo sob o czarismo, em especial após a abolição da servidão. Para os marxistas russos seria este novo proletariado, surgido de um campesinato que se deslocou de trem para os centros urbanos e passou a ser a força de trabalho fabril, a essência das forças revolucionárias. Os proprietários de terras liberais e os intelectuais urbanos que Marx havia vislumbrado como os agentes da mudança, seriam revelados como conservadores de um regime em decadência. É importante lembrar que, nesta época, fim do século XVII, a Rússia construía ferrovias mais depressa do que todos os outros países europeus. Em 1891, o governo imperial começaria a construção da maior de todas as ferrovias, a Transiberiana, cobrindo 6500 quilômetros até o Pacífico. A mobilidade e a interconexão de tão extenso território alterariam profundamente as possibilidades de aliança entre camponeses e proletários.

Lenin, um dos grandes responsáveis, após Bakunin e Plekhanov, da chegada do pensamento de Marx à Rússia, perdeu seu irmão Alexandre enforcado por ter tentado matar o Czar Alexandre III. O irmão de Lenin era a expressão da intelectualidade urbana que Marx pensava que poderia se associar aos proprietários liberais para mudar o regime. Lenin expressava o imponderável, a transformação do pensamento marxista e do socialismo científico em uma força propulsora e revolucionária em terreno aparentemente árido de um campesinato empobrecido e com grande temor ao czar. Não esqueçamos que no domingo sangrento de 1905, a massa marchou em direção ao palácio de São Petersburgo na esperança de ouvir seu “paizinho”, o Czar. A morte do irmão teve muito impacto sobre Lenin e reforçou nele a reflexão de que não adiantava assassinar uma única pessoa, mesmo que fosse o Czar, isso não mudaria o regime, era preciso ir além. Eles foram além. Inspirados pelo Manifesto Comunista e pelos ensinamentos de Marx sobre o funcionamento do capitalismo colocaram fim a 300 anos da dinastia Romanov. Como diria Lenin,

Quando as massas estão digerindo uma nova e excepcionalmente rica experiência de luta revolucionária direta, a luta teórica por uma perspectiva revolucionária, ou seja, pelo marxismo revolucionário, se torna a palavra de ordem do dia. (Duas cartas, 1908).
 

Sim, 100 anos após seu nascimento, Marx estaria presente no processo revolucionário russo. Hoje, 200 anos depois, ainda bebemos da fonte dos dois fenômenos, que seguem iluminando nossas reflexões sobre os inevitáveis caminhos emancipatórios da humanidade.