Carta para Nelson Pereira dos Santos

Cá nos sertões do Norte de Portugal, onde ora me encontro, chegou-me a triste notícia de que você tinha terminado por cumprir a sua bela sina sobre a terra. Junto o meu lamento ao de tantos outros brasileiros, de cá e de além-mar. Acredito, porém, que os homens de bem não morrem, encantam-se no coração do seu povo.

Por Rosemberg Cariry

Nelson Pereira dos Santos - Divulgação

Agora você é semente plantada no coração de uma nação inteira. No panteão dos nomes e dos mitos do cinema brasileiro, você já participava da trindade consagrada. Humberto Mauro, com seu lirismo interiorano e cheio da poesia, é o “pai”. Glauber, com o seu sertão transbarroco, contraditório e violento, tomado pelo fogo da imaginação messiânica, é o “filho”. Você, meu caro Nelson, no vértice dessa pirâmide, é o “espírito” tocado por todos os santos e orixás, o homem que acendeu uma candeia na escuridão de um tempo e com luz esculpiu mil rostos mestiços para o povo brasileiro em movimento. Ave, cinema!

Sempre vi você, meu caro amigo, como um homem de origem popular e, por isso mesmo, herdeiro de saberes e sensibilidades coletivas que deram ao seu cinema éticas e estéticas de feitio único. Seu cinema nasceu em um tempo de grandes mudanças, sofrendo por igual as influências dele, mas sem nunca esquecer de unir a essa herança plural uma estética marcada pela originalidade e pela brasilidade, arriscando assim um voo auspicioso para o futuro. A sua câmera, enamorada do realismo italiano e da nouvelle vague francesa, subiu os morros cariocas e descobriu, nos sambistas, trabalhadores explorados e marginalizados, uma tristeza tão triste, como nem mesmo um cantor dos trópicos antes sonhara sentir e uma beleza tão bela, que nenhum poeta antes ousara perceber.

Eu diria que o moderno cinema brasileiro foi inventado por você nos morros cariocas. “Rio 40 Graus” e “Rio Zona Norte” são filmes que nomeiam o tesouro da cultura e das artes afro-brasileiras ali guardados e afirmam o samba como expressão da brasilidade e da universalidade da nossa cultura. Na época, o Partido Comunista torceu o nariz (esperava o acolhimento puro e simples do “realismo socialista soviético”), a intelectualidade bem pensante teve náuseas (para ela, o povo humilde fede e tem que ser mostrado nas favelas como bandidos e segmento feito de “homens-monstros”), a censura proibiu (os homens de bem do nosso País devem ser brancos e falar bom inglês), a crítica vociferou (nunca seremos como “holiúde”, onde os negros são bonitos, bem nutridos e têm dentaduras invejáveis).

Diz um poema Tuareg que “Deus fez os países férteis e cheios de água para neles Ele habitar e que fez os desertos para que neles os homens encontrassem a sua alma”. Você sabia, meu caro Nelson, que era impossível inventar o Brasil apenas com os morros cariocas. Era preciso um outro mergulho no Brasil mais profundo, vindo de um tempo mais recuado. Sabidamente, o seu encontro com o austero Graciliano Ramos gerou um dos mais importantes filmes brasileiros de todos os tempos: “Vidas Secas”. No mais ignoto e inóspito sertão, você encontrou essa alma quase indecifrável de um modo de ser indizível, cumprindo a profecia da canção tuareg.

Eu, cearense e sertanejo, caboclo de couro curtido pelo sol, que trago também na alma as marcas da dureza das pedras e de mal plantada esperança, tenho a peça literária e o filme “Vida Secas” como uma das obras iniciáticas e fundadoras das artes brasileiras, nessa peleja de decifração de nossa alma como construção identitária de uma nação. Traduzido para o cinema, o romance de Mestre Graciliano resultou em obra-prima realizada em uma paisagem de vazios e essencialidades, captada com a precisão e a verdade transcendental de um monge Zen, quando pinta os seus bambus sobre os vazios, que, mesmo fixos pela nanquim, tremulam ao vento. Assim como Josué de Castro, na sua “Geografia da Fome”, você viu o sertão como um cenário cósmico, com sua natureza retorcida pelo sofrimento, onde o homem representa a sua tragédia e trava com Deus uma luta pela sua humanização. Você sabe muito bem que no fundo a nossa boa luta é com Deus, como símbolo de tudo não sabido, em busca da nossa humanidade.

O sertão como gênese. Nessa paisagem, o silêncio é uma faca-gemido-de-carro-de-boi, cortando a alma, e a poesia se faz toda de pedra. Pedra sobre a pedra, feito os hieróglifos do Ingá, faiscando fogo e desenganos, pelo atrito da vida mínima (Vidas Secas), um sertão precisado, onde tudo ainda precisar ser recriado: a caatinga seca e retorcida à espera da chuva, o pó das lágrimas onde só restou o sal, as arribaçãs sedentas sem forças para atravessarem os mares, o papagaio mudo que alimenta a tristeza das crianças e de uma cadela chamada Baleia, a qual chora com mais intensidade do que mesmo os homens e sonha com preás gordos, como se existisse uma “idade de ouro”, um “São Saruê” para os cães.

Na paisagem desolada, do sertão-abandono, os homens quase mudos gemem como mugem os bois. Só nas crianças, mesmo sendo bichinhos frágeis, há um soprinho de esperança, na verdade um fiapo, quase diáfana. É como se ali tudo ainda estivesse misturado à natureza, em busca de consciência e de humanidade. Tudo feito de barro seco em busca do sopro de um Deus barroco e distante. Um mundo ermo e esquecido, à espera da Era do Espírito Santo (profetizado por Joaquim de Flora e Conselheiro), que iluminará a alma, promoverá a fartura e ditará as regras da justiça, da igualdade e da beleza.

“Vidas Secas” é um filme eterno e toca a alma mais profunda da paisagem, onde o Brasil foi inventado e se fez depositário de uma rica universalidade: o sertão. Por tudo isso, a poesia de “Vida Secas”, como um texto bíblico, tem sentido inaugural, fez-se eterna. Nele, a fotografia, de sombras e luzes que explodem em imensidões, diante do gesto contido, do medo e da fome dos homens, parece talhada no celuloide, como se fosse xilogravura cortada na umburana bravia. Uma fotografia assim, como um rasgo profético de um anacoreta do deserto, só poderia nascer da alma ensolarada de um sertanejo das ribeiras do Acaraú: o cearense Luiz Carlos Barreto – outro grande mestre da poesia em luz.

Sempre imagino que, na sequência final de “Vidas Secas”, o vaqueiro Fabiano, sua mulher Sinhá Vitória e os meninos, andando naquele paraíso ao inverso, no chão de brasa viva, em direção àquele céu de luz tão luminosa que os olhos mal podem suportar, vão chegar a São Paulo. Os meninos vão crescer e se transformar em valentes operários metalúrgicos do ABC e vão todos ajudar, juntos aos camponeses sem-terra, índios rebelados, quilombolas e favelados, a construírem um país mais justo.

Feito um cantador de martelos e improvisos, imagino na periferia da metrópole, um grande circo simbólico, sem empanada e sem coberta, com seus mastros e cordas enfeitados de fitas e trapos coloridos. Nesse circo, Humberto Mauro, o pai – o dono do circo, é o tocador de viola e cantador de modinhas. Glauber, o filho, é o propagandista, o homem da cobra, o vendedor da pomada Padre Cícero e do Bálsamo da Vida. Você, meu caro Nelson, é o espírito popular, é o mágico tirando da cartola os mil e um rostos do povo brasileiro herdeiro de mil e uma artes, mostrando um povo grávido das múltiplas possibilidades de transformar o mundo pela universalidade da sua espinhosa cultura. É neste circo que peço a sua licença para que os refletores iluminem um dos filhos do vaqueiro Fabiano e de Sinhá Vitória, chamado Lula – o que juntou o povo miúdo para construir um destino grande, em um mundo que sonhou mais justo e igualitário. Como Fabiano, Lula foi preso pelo soldado amarelinho e medíocre, em um processo farsa. Mas, ao contrário de Fabiano, Lula resiste junto com o povo brasileiro.

Nelson, meu caro amigo, no céu, dá lembrança a todos os grandes brasileiros que por aí chegaram e diz que estamos precisando de ajuda: o tempo por aqui está por demais sombrio. Se eles quiserem ajudar no coro, diz que a palavra de ordem é “Lula Livre”.