“Maracatu é religião” dizia Mestre Afonso, que se ‘encantou’ domingo 

Nem a morte fará desaparecer da memória dos pernambucanos a grande figura do babalorixá Mestre Afonso, líder do centenário Maracatu Nação Leão Coroado, que se encantou na noite do último domingo (15). Seu batuque silenciou, mas o trabalho de duas décadas à frente do Leão Coroado não terá sido em vão, pois uma nova geração continuará, certamente, a obra do Mestre, apesar da inexistência, agora, de um sucessor por ele preparado. 

“Maracatu é religião” defendia Mestre Afonso, que se ‘encantou’ domingo - Divulgação

Afonso Gomes de Aguiar Filho nasceu no Recife há 70 anos. Foi de Luiz de França (1901-1997), uma das grandes referências no maracatu de baque virado do estado, que herdou em outubro de 1997 o comando do legítimo maracatu de nação africana, símbolo da resistência negra em Pernambuco, em compromisso com os orixás. Apesar de liderar um grupo vencedor de muitos carnavais, Mestre Afonso discordava dos que consideram o Leão Coroado uma manifestação pagã, uma “agremiação” carnavalesca. “Maracatu, não é carnaval. É religião”, defendeu o Mestre, em 2013, em entrevista ao Jornal do Commercio.

Na mesma entrevista, ele manifestou discordância também quanto à estilização dos maracatus em Pernambuco, que ganhou força na década de 1990. Incomodava o mestre, o fato de outros grupos modificarem elementos tradicionais dos maracatus, com o acréscimo de novas organizações, instrumentos e fundamentos. “Os maracatus saem por aí com toques dos abês. É bonito demais, só que não é coisa de maracatu. No toque do candomblé, da nação nagô, não há abês”, disse ao JC, em referência ao instrumento feito com cabaça coberta por uma rede de miçangas. Esse “desvirtuamento” levou Mestre Afonso a retirar o Leão Coroado do circuito oficial do carnaval do Recife.

A atuação do mestre como dirigente e líder religioso do grupo incluía ainda uma forte defesa da cultura e da tradição africana, negra e pernambucana. Em março deste ano, sob sua liderança, o Maracatu Leão Coroado passou a manter um projeto de salvaguarda do patrimônio imaterial, com o compromisso de registrar os aspectos positivos e também de luta enfrentados pelo grupo.

O corpo de Mestre Afonso foi sepultado no fim da tarde desta terça-feira (17) ao som de toadas africanas e o rufar de tambores e alfaias, numa cerimônia emocionante. O Leão Coroado aguarda a finalização do axexê (cerimônia fúnebre realizada após o enterro de um iniciado no candomblé), que dura sete dias, para definir os rumos da Nação.

Luciana lamenta morte

Em sua página no Facebook, a deputada federal e presidenta nacional do PCdoB, Luciana Santos, manifestou sua tristeza pelo falecimento de Mestre Afonso. “Neste domingo recebemos a triste notícia do falecimento do Mestre Afonso. Aos 70 anos ele era símbolo de resistência negra e cultural em Pernambuco e estava à frente do Maracatu Leão Coroado, agremiação mais antiga do estado, há mais de 20 anos, sucedendo o mestre Luís de França que exerceu a função de 1954 até 1997.

Mestre Afonso esteve conosco nas mobilizações pela instituição de um dia nacional do Maracatu e em tantas outras atividades em defesa da cultura pernambucana. Dedicou seu tempo a compartilhar seu conhecimento e seu amor pelas expressões culturais através de atividades educativas como aulas de percussão e toque de candomblé, oficinas de feitura e manutenção dos instrumentos musicais, além de confecção do vestuário do maracatu, entre outras ações de reunião e fortalecimento do maracatu e suas tradições. Um legado que inspira respeito e homenagens”.

Secult/Fundarpe

Em Nota divulgada nesta segunda-feira (16), a Secretaria de Cultura do Estado e a Fundarpe destacam : “Afonso sempre se mostrou um mestre generoso, dedicando seu tempo a atividades educativas como aulas de percussão e toque de candomblé, oficinas de feitura e manutenção dos instrumentos musicais, além de confecção do vestuário do maracatu”.

Patrimônio Vivo

O Maracatu Nação Leão Coroado foi fundado em 1863, sendo uma das mais antigas nações em atividade. Suas cores oficiais são o vermelho e o branco, em honra ao orixá Xangô, patrono do grupo. Foi reconhecido como Patrimônio Vivo de Pernambuco em 2005.

Maracatu Nação de baque virado, o Leão Coroado é uma forma de expressão que congrega conjunto musical percussivo a um cortejo real e alcança maior destaque nas saídas às ruas para desfiles e apresentações no período carnavalesco. É realizado por comunidades situadas, em sua maioria, nos bairros periféricos da Região Metropolitana de Recite.

A tradição do Maracatu Nação articula relações comunitárias, práticas culturais, memórias e vínculos fundamentais com o sagrado, sobretudo por meio da relação desses grupos com os Xangôs e com a Jurema Sagrada. Enquanto expressões culturais enraizadas nas comunidades detentoras, carregam elementos essenciais para a memória e identidade da população afro-brasileira, parte constituinte da diversidade cultural do país. Recebeu o título de Patrimônio Cultural do Brasil em 2014.