Sem chororô, pois africanos somos!

por Juarez Xavier*

samba

Não gosto de escolas de samba ligadas às torcidas organizadas de times de futebol! Não é preconceito, mas elas trouxeram para o universo do samba a hostilidade dos estádios de futebol. Éramos parentes próximos, transformamo-nos em inimigos. Vaiam escolas tradicionais, desrespeitam mulheres e homens das velhas guardas, achincalham os pavilhões, transformam o desfile numa praça de guerra.

Em São Paulo, essas escolas ajudaram a consolidar um tipo de desfile, moldado ao gosto de classe média e da TV: evolução de um bloco concentrado, com volume, sem cultura sambística e quase sem gente preta, assim como as arenas de futebol. As/os eugenistas do século 19 não teriam feito melhor! Não precisa sambar, nem cantar e nem conhecer a história da escola.

Nos anos de 1980, eu, meu compadre Edson, João Negão, Luiz, “Bonitão”, varríamos todas as quadras de todas as escolas, exceto terça-feira que não tinha samba em S. Paulo [até hoje não descobri por quê?]. Conhecemos as/os caras que fizeram do Peruche [escola da “malandragem” da Casa Verde], do Nenê [escola da bateria divina], “da” Mocidade [escola fonte de criatividade] e do Camisa [escola de desfiles perfeitos e magníficos] as escolas que construíram a cultura do desfile das escolas de samba em S. Paulo.

O Vai-Vai só entra no time das campeãs em 1978 (mas, desde a década de 1930, também faz parte do quilombagem negra do samba paulistano). Cada uma com sua cultural, seu DNA, sua identidade. Desfilei muitas vezes na “Gaviões”, quando era bloco, ao lado de gente como o cantor  “Branca de Neve” e outras/outros corintianas/os que respeito muito (a “Gaviões” é afilhada da “Camisa Verde e Branca”, e a bateria era formada por batuqueiros da Vai Vai, naquele época). Éramos juntos e misturados! Bons tempos!

Aí, chegam às escolas as/os carnavalescas/os. No Rio, nos anos de 1950; em São Paulo, nos anos 1970, se não me falha a memória (cada vez mais fraca para coisas insignificantes). Gente de classe média. Donas/os do capital cultural, com seus diplomas universitários e seus valores de classe. Depois as/os coreógrafas/os (saem as alas de passo marcado; cada ala espetacular), cujos movimentos migravam para o “Chic Show”, “Amauri”, “William Black Power”, “Os Carlos”, “Guilherme Jorge”, “Club Homes”, e tantos outros lugares. Não precisava mais sambar!

Tapa na cara da comunidade: “as rainhas”, “princesas” e “musas”. Com raras exceções, degradadoras das baterias. Convergência de capital: econômico, cultural, político conservador e social! Formou-se o circuito da “supremacia branca” da classe médio no meio negro do samba:

– Carnavalesco [que se apropria dos conhecimentos coletivos da comunidade, muitas/os chegam às escolas absolutamente desconhecidas/os].

– Coreógrafas/os (sempre é bom lembrar, encontrávamos Ismael Ivo “encantando” nas quadras) que usam, nem todas/os, as escolas como plataformas midiáticas.

– As “rainhas”, “princesas” e “musas”, que não precisam saber sambar, bastam ser “atrizes”, “modelos” e “socialite” (quem viu “Guga” sambar na quadra no Camisa e vê “Ivi Mesquita” [filha do grande “Bola”, camarada de lutas políticas antirracista] na Vai Vai [Bolaji é fã de carteirinha dela] e “Nani”, na época da Mocidade) não se conforma com essa palmitaria.

O resultado é esse: desfiles sem Camisa, Nenê, Leandro, em São Paulo; e o Império (com sambas memoráveis) como ioiô, no Rio: sobe num ano, desce no outro. Pior: a despolitização social e racial das escolas. Outra vez, com raríssimas exceções, cada enredo idiota, medíocre e estúpido (emanados da cabeça das/os “criativas/os carnavalescos”; totalmente alienados da realidade social e política das pessoas comuns, de carne e osso).

Como parte do patrimônio imaterial dos povos negros nas Américas, as escolas de samba precisam resgatar suas histórias, memórias e valores, tão importantes para a criação da identidade negro-africana e da civilização brasileira. Não precisa ser apenas de negras e negros; mas é imprescindível que a cultura e a ambiência sejam afrodescendentes. Essa é a base da diversidade e pluralidade, motor da criatividade, invenção e inovação.

As escolas de samba formam o maior laboratório de inovação de tecnologia social que a civilização brasileira inventou; na sua maior manifestação cultural, que é o carnaval! Elas (ao lado dos terreiros e das manifestações culturais emanadas deles) foram fundamentais, em especial no Rio e em S. Paulo, para frear a máquina da segregação radical (genocídio, etnocído, epistemicídio) de negras e negros nos espaços urbanos, desde o fim da escravidão (será?, indagou com o dedo na cara da classe média conservadora carioca, caricatura dos escravocratas do império, a Tuiuti, campeã na avenida, de fato!).

Parabéns as comunidades da “Beija Flor” (denúncia da violência de classe, raça, cultura e gêneros) e “Tatuapé” (magia negra do barro maranhense). A primeira, por ter uma comissão de carnaval, e defenestrar a figura do carnavalesco (olha que os caras tiveram Joãozinho Trinta); a segunda, por ter uma quadra embaixo de um viaduto na Vila Carrão [portão de ingresso no Lado Leste da cidade, pertinho do Parque S. Jorge] e distribuir fantasias. (além das presenças luxuosas da minha amiga Leci Brandão, Roberto de Oliveira e família, sobrinhos (Betinho e Samira) e um médio sobrinho, o diretor de Harmonia, Marcelo Garcia Leal, filho do saudoso corintianíssimo Nilton “Maiado” Garcia Leal, que me fez voltar a estudar, sustentou-me na fábrica, acompanhou-me na invasão ao Maracanã e virou uma baita referência).

Não é chororô! É só uma constatação! Pois, africanos somos (e devemos continuar a sê-lo)!

Juarez Xavier é professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp)

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