O dia em que Lula esteve em Água Fria

Na próxima quarta-feira (24), haverá o julgamento do ex-presidente Lula em Porto Alegre. Ali, o Tribunal Regional Federal, e tantos al, al, al, bem ladram o previsível, Lula terá um recurso julgado contra sentença de Sergio Moro, aquele juiz que lhe presenteou um tríplex.

Por Urariano Mota

Artistas com Lula em ato no RJ solidariedade ao ex-presidente e reivindicação de julgamento justo - Ricardo Stuckert

Então é hora de recordar a presença do presidente mais popular da história entre nós, no dia em ele foi ao bairro da minha infância, que todos chamam de Água Fria.

De frente para o que um dia foi o Cine Império, ia ser inaugurada a primeira agência do Banco Azteca no Brasil. Homens, mulheres e crianças tomaram conta do largo, como antes nos idos 60 invadiam o mesmo lugar para dançar o frevo. Mas em 27 de março de 2008 não vêm para o carnaval, nem muito menos prestigiar a inauguração de uma agência pequena, sem luxo. “Lula vem aí. Lula vem inaugurar o Banco”. Por isso se reúnem tantos, tantas e tantinhos, em curiosidade e aflição. A massa, esta massa periférica, sonha, carece de melhor vida, de dinheiro, como a senhora Suzana, gorda, de olhos rasgados de índia.

– O que a senhora quer de Lula? eu pergunto.

– O senhor é do grupo dele?

– Não…. (vontade tenho de dizer “eu sou do grupo da senhora”, mas me calo)

– Eu quero 150 reais.

– Pra quê?

– Pra comprar mordalela, pão, carvão, guaraná, cerveja, queijo, milho, aí eu faço pamonha, .manguzá…

– Isso tudo com 150 reais?!

– É só uma ajuda. Eu já tenho o carrinho de vender lanche. É só uma ajuda….

Lula demora. Deveria chegar às 3, mas já são 4 da tarde. Rapazes com terno preto, em um calor de 38 graus, fazem a segurança. Rijos como estátuas, com o olhar vazio de bronze.

– Desde que hora vocês estão aqui? pergunto.

– Desde 9 da manhã.

– Com esse terno preto, debaixo deste sol?

– É bronca.

– Quanto a diária?

– Vinte e cinco reais mais almoço.

Noto que um supervisor lhe traz uma bala. De café. É bronca. De vez em quando, em um ponto da multidão, há gritos, aplausos. Os seguranças olham em direção ao tumulto. É apenas algum gaiato que anuncia, “Lula chegou”. Se eu sair do meu lugar, aqui junto ao cavalete, perderei o assento dos pés. Eu me pergunto como esses jovens se mantêm impassíveis desde as nove da manhã. 16 e 30. Há um alvoroço. Há uma onda que me empurra, há uma corrente de eletricidade a passar por todos os corpos. Minha mulher, a fotógrafa, que faz sua estreia de máquina e de profissão, me desperta: os soldados da PM tomam posição de sentido.

– Olha os batedores!

Então vem um carro escuro, que passa pelo “portão” de cavaletes, e somente para adiante. Súbito há um estouro, não de fogos nem de boiada. Há um rumor que cresce, que se torna incontrolável, que mais lembra um orgasmo coletivo. Sofrido, querido e esperado. É Lula! É Lula! Todos gritam. Os berros se fazem ouvir mais alto, ensurdecedores. Mulheres, meninos, homens chamam a atenção do Presidente, querem chamá-lo, e ele não sabe para que lado do cercado de cavaletes se dirija. Na hora uma ideia tenebrosa me ocorre: se caísse um raio aqui, todos morreriam felizes. Mas essa ideia não atinge palavras. Lula vem para o nosso lado. É ele. A minha fotógrafa se esquece de mim e avança para o círculo estreito onde todos lhe querem tocar a mão. Aos gritos. Aos prantos. Aos empurrões, apesar de reprimidos pelos jovens rapazes de negro.

A última vez em que vi algo semelhante em Água Fria foi em 1965, no último dia de carnaval. Tocou Vassourinhas e não havia força que contivesse o gozo da multidão em fúria. Agora sem frevo, sem orquestra, desta vez a multidão delira como se estivesse diante de um astro pop. O presidente passa a ideia de um santo, porque tem poderes para ajudar os que padecem, e de fascínio, porque mostra como um homem do povo consegue ser importante. Por isso as mulheres gritam, “Lula, meu lindo!”, por isso os homens apertam-lhe a mão, com força e calor, por isso os meninos levantam a cabeça, todos os meninos levantam a cabeça. Então eu percebo que os periféricos não se embriagam somente de álcool e frevo. De Lula também se embriaga a gente. Como no carnaval fora de época de 2008, em Água Fria.