A mais longa juventude de Soledad Barrett

A data oficial dos assassinatos de Soledad Barrett, e mais 5 militantes jovens aqui no Recife, é 8 de janeiro de 1973. Com referência a Soledad, pude escrever em “Soledad no Recife”, o livro que atualizou a sua tragédia:

Por Urariano Mota*

Soledad Barret - Reprodução

“Foram seis homicídios, todos unidos e simplificados em um aparelho da Chácara São Bento, um sítio na região metropolitana do Recife. Todos, pelo anúncio dos jornais, perigosos terroristas, que resistiram à bala ao cerco das forças da ordem. Mas só depois de mortos se fez a maquiagem nos jovens socialistas: com tiros, para melhor coerência do suplício: Pauline Reichstul, José Manuel, Soledad Barrett, Evaldo Ferreira, Jarbas Pereira, Eudaldo Gomes.

A advogada Mércia Albuquerque, na Secretaria de Justiça de Pernambuco, falou para sempre: “Soledad estava com os olhos muito abertos, com uma expressão muito grande de terror. Eu fiquei horrorizada. Como Soledad estava em pé, com os braços ao lado do corpo, eu tirei a minha anágua e coloquei no pescoço dela. O que mais me impressionou foi o sangue coagulado em grande quantidade. Eu tenho a impressão de que ela foi morta e ficou deitada, e a trouxeram depois, e o sangue, quando coagulou, ficou preso nas pernas, porque era uma quantidade grande. O feto estava lá nos pés dela. Não posso saber como foi parar ali, ou se foi ali mesmo no necrotério que ele caiu, que ele nasceu, naquele horror”.

Essa poderia ser a sua última imagem. Mas em “A mais longa duração da juventude”, o meu mais novo romance, Soledad ressurge na sua juventude, que eu gostaria de tornar infinita:

“Na memória, a sua imagem volta em preto e branco ou sépia. Em uma ampliação fotográfica, o sépia. O preto e branco na penetração de um sonho. Ela é a mulher pretendida por mim e outros militantes naqueles anos. Há um sentimento de delicadeza que nos invade. Eu a vejo no quintal da casa de Marx, em Jaboatão. Cheia de uma beleza que não desejava chamar atenção, me ocorreu. Então ninguém podia imaginar que a visão das suas pernas, que ela nos furtava com túnicas, calças jeans, saias longas, cobriam o trauma de cruzes nazistas em cicatriz, gravadas à força em suas coxas no Uruguai…

Ela vem e vira o rosto para melhor escutar uma revelação. Eu a tenho com o rosto quase em cima do meu. E num segundo me falo: “Eu não sou louco”. E me repito, como um condenado à ação, mas que reluta e se debate. Os meus punhos se fecham, porque as mãos querem acariciar o seu rosto, pescoço, ombros. Como pode um ser humano resistir ao que clama a própria carne? Eu a quero, eu a desejo, eu sou uma tartaruga que rompe o ovo, é natural, é incontrolável. As unhas aperto contra as minhas mãos, enquanto Soledad me diz:

– Sim? Fales.

Por Deus, como é linda. Se eu não for um homem, serei um rato, uma abominação da sarjeta.

– Sim, fales.

Então eu, este sem esperança, recebo o raio da loucura:

– Isto, Soledad, eu lhe digo. – E a beijo no rosto. – Isto!

Então ela, surpreendida, se afasta, ruborizada. Num fração de segundo vi lhe passar na face uma chispa de indignação. “Meu Deus, eu fui um louco. Um louco! Maldição”, me digo. Então ela se transforma, como se pelo cérebro houvesse passado uma chama de compreensão. Afinal, eu era apenas um homem, eu não passava de um companheiro que num momento cedera à fraqueza. E Soledad dá o conforto de um sorriso, contido, mas sorriso:

– Entendo. Nada mais queres me falar?

– Você me perdoa a falta?

– Não há nada a te perdoar. Temos tarefas mais urgentes.

– Você me permite mais uma chance?

– Se não for igual à de antes, sim.

– Não, é isto.

E me aproximo e me ergo até os seus lábios, que toco e aliso com os meus. Ela fecha a boca e vira o rosto. Então eu caio em mim e numa cadeira da cozinha. “Eu sou um louco! Um louco! Eu não mereço a mínima consideração. Louco!”. E saio para a rua sem me despedir. E venho refletindo até hoje, desde aquele dia em que toquei os lábios de Soledad. Fui louco? Penso agora que não fui. A paixão é uma forma de estar embriagado de humanidade”.
Esta é a imagem de Soledad que eu gostaria de guardar neste 8 de janeiro de 2018. Presente.