Fake news ou fake ideas?

 A revolução neoliberal entronizou um novo tipo de engodo político, a mentira especializada.

Por Luiz Gonzaga Belluzzo*

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A revista Piauí publicou em sua edição de dezembro um artigo instigante do sociólogo e economista alemão Wolfgang Streeck. Instigante para os mortais que ainda conseguem preservar intactos seus neurônios diante dos sucessivos ataques empreendidos pelos especialistas contemporâneos em fake ideas.

No artigo intitulado “O retorno do recalcado”, Streeck trata das origens e dos desdobramentos da agenda neoliberal: “A guinada neoliberal ocorreu sob o signo de uma deusa chamada TINA – There Is No Alternative (Não Há Alternativa). Sua longa linhagem de sacerdotes e sacerdotisas vai de Margaret Thatcher a Angela Merkel, passando por Tony Blair.

Quem desejasse servir a essa deusa, sob o cântico solene dos economistas de todos os países, precisava reconhecer o avanço do capital mundo afora, escapando de seus grilhões locais, como uma necessidade ditada pelas leis da natureza e pelo bem comum. Precisava também se empenhar ativamente na desmontagem dos obstáculos a lhe atravancarem o caminho.

Práticas típicas dos não convertidos à deusa TINA, como o controle da circulação do capital e benefícios do Estado, deveriam ser perseguidas e exterminadas; ninguém mais deveria ter o direito de se furtar à “concorrência global” e de se acomodar confortavelmente em qualquer tipo de rede nacional.

Tratados de livre-comércio deveriam abrir os mercados e resguardá-los de toda e qualquer intervenção estatal; uma “governança global” haveria de substituir os governos nacionais; as antigas medidas de proteção contra uma excessiva mercantilização da vida dariam lugar, agora, à capacitação para o mercado; ao Estado de Bem-Estar Social caberia ceder terreno ao Estado competitivo de uma nova era de racionalização capitalista.

Toneladas de tinta foram e continuam sendo derramadas sobre outras tantas de papel para exaltar a tal da globalização, a maior integração das economias, os incontroláveis processos de automação e informatização, a terceirização e a redução do número de assalariados, o fim do trabalho e o poder disciplinador dos mercados financeiros.

Nos países desenvolvidos, a maioria que sobrevive na base da pirâmide distributiva está submetida às angústias da insegurança sem esperança. Além do desemprego crônico e endêmico, os que continuam empregados assistem ao encolhimento das oportunidades de um emprego estável e bem remunerado. Não bastasse, estão sob constante ameaça de definhamento as instituições do Estado do Bem-Estar Social, que ao longo das últimas décadas vinham assegurando, nos países desenvolvidos, direitos sociais e econômicos aos grupos mais frágeis da sociedade.

Tal sensação de insegurança é o resultado da invasão, em todas as esferas da vida, das normas da mercantilização e da concorrência, como critérios dominantes da integração e do reconhecimento social. Nos países onde os sistemas de proteção contra os frequentes “acidentes” ou falhas do mercado são parciais ou estão em franca regressão, a insegurança assume formas ameaçadoras para o convívio social.

A expansão da informalidade e da precarização das relações de trabalho e a desagregação familiar que as acompanha tendem a avançar para a criminalidade eventual e, depois, para o crime organizado. Os subsistemas socioeconômicos que vivem da atividade criminosa ou ilegal passam a ocupar o espaço deixado pelo desaparecimento das oportunidades de vida antes oferecidas pela economia “oficial”.

Diz Streek que a revolução neoliberal e, atrelada a ela, a transição rumo à “pós-democracia” entronizaram um novo tipo de engodo político: a mentira especializada.

“Sua estreia deu-se com a Curva de Laffer, que comprovaria cientificamente que reduções de impostos conduziriam a uma arrecadação tributária maior. Em seguida, especialistas em finanças, como os ex-presidentes do Fed (o banco central americano) Ben Bernanke e Alan Greenspan, e o ex-secretário do Tesouro Larry Summers, concordavam que medidas de segurança tomadas por investidores racionais, em interesse próprio e por sua própria conta, bastariam para estabilizar mercados financeiros cada vez mais ‘livres’ e globais… As autoridades estatais não precisavam atuar contra a formação de bolhas, até porque já era possível anular sem dor os efeitos de uma eventual reversão de expectativas.”

A repetição desses motes parece tão sinistra quanto o choro das carpideiras, pelo menos para a grande maioria dos emergentes, países como o Brasil que pretendem ingressar no clube dos ricos mimetizando suas caricaturas e menosprezando suas práticas históricas.

Os acontecimentos recentes mostram: apesar da retórica dos especialistas em fake ideas, o almejado acesso ao título de sócio do clube dos desenvolvidos está prestes a receber bola preta. Enquanto a China se senta à mesa dos bacanas, nós catamos as migalhas que espirram na tapeçaria da globalização.