Anistia ameaça levar UE ao tribunal por abusos com refugiados 

Anistia Internacional (AI) ameaça levar dirigentes da UE ao tribunal por abusos com refugiados da Líbia. "Nos vemos no tribunal”, disse John Dalhuisen, diretor da ONG internacional, dirigindo-se aos líderes que financiam a guarda costeira libía e um sistema de centros de detenção que opera em conjunto com milícias e traficantes

migrantes sob comando de torturadores - Reuters

Assinado o acordo com a Turquia que em 2016 travou a chegada de milhares de requerentes de asilo às ilhas gregas, a rota do Mediterrâneo viu crescer o número de barcos e naufrágios. Mas algo aconteceu ao longo de 2017. No auge do verão, altura em que as travessias batiam recordes, o número de chegadas diminuiu 70%. O problema ou crise, como os governantes europeus falam dos refugiados, não desapareceu. O que aconteceu foi que a Europa exportou parte da tarefa que lhe cabia.

As primeiras provas e palavras fortes e institucionais vieram da ONU. Acompanhado pela CNN, William Lacy Swing, diretor da Organização Internacional para as Migrações, visitou em novembro algumas das centenas de milhares de refugiados e imigrantes detidos arbitrariamente em centros de detenção geridos pelo Governo da Líbia. “O sofrimento destas pessoas é um insulto à consciência da humanidade”, disse o comissário da ONU dos Direitos Humanos, Zeid Ra'ad al-Hussein.

Swing, o primeiro chefe de uma agência da ONU que visitar o país desde a queda de Kadhaffi, usou expressões como “desgraça sem fim” para descrever o que viu. A câmara da CNN filmou homens e rapazes empilhados em divisões ou de joelhos na rua, em filas, obedecendo a homens vestidos de negro de cara coberta – membros de milícias e de redes de tráfico.

A rede "maldita"

Agora foi a vez da Anistia Internacional entrevistar refugiados, requerentes de asilo, imigrantes, responsáveis líbios e outras pessoas com conhecimento dos abusos. Desse trabalho resultou o relatório "A rede negra de conspiração da Líbia", que detalha como os governos europeus estão “ativa e conscientemente financiando um sofisticado sistema de abuso e exploração de refugiados e imigrantes por parte da Guarda-Costeira Líbia, autoridades [que gerem os centros] de detenção e traficantes, com o objetivo de impedir essas pessoas de atravessarem o Mediterrâneo". 

As provas, diz a AI, chegam para acusar líderes de estados da União Europeia em tribunais internacionais por violarem as suas obrigações de direitos humanos. “Nos vemos no tribunal”, disse para a Europa John Dalhuisen, director da ONG.

“Sabemos das condições terríveis e desumanas que alguns enfrentam. Partilhamos o mesmo objetivo da Anistia: salvar vidas”, comentou um porta-voz da Comissão Europeia. “É graças a nós que a questão dos direitos humanos na Líbia tem melhorado”, disse, por sua vez, o primeiro-ministro italiano, Paolo Gentiloni.

No fundo, as acusações são bastante diretas, assim como os fatos que as sustentam são assustadoramente simples. Há “centenas de milhares de refugiados e imigrantes encurralados na Líbia à mercê das autoridades, milícias, grupos armados e contrabandistas que muitas vezes trabalham juntos por questões de lucro”. Destes, “dezenas de milhares são mantidos indefinidamente em centros de detenção, onde são sujeitos a abusos sistemáticos”.

No relatório surgem muitos relatos de tortura – alguns só interrompidos quando a vítima conseguiu contatar familiares que enviaram dinheiro para que fossem poupados. Também há mulheres que sofreram estupros coletivos, com a participação de funcionários dos centros. E a AI não tem dúvidas da cumplicidade dos políticos: “os governos europeus não só estão completamente conscientes desses abusos; na medida em que financiam as atividades das autoridades líbias para parar as travessias e manter as pessoas na Líbia, são cúmplices dos próprios abusos.”

No fim de 2015, surgiu o fundo UE-África, com os europeus oferecendo 2000 milhões de euros aos países que impeçam pessoas de sair ou que aceitem receber deportados.

Depois, em 2016, diferentes estados, particularmente a Itália, puseram em prática uma série de medidas para tentar encerrar a rota que passa pela Líbia e atravessa o Mediterrâneo Central: primeiro, comprometeram-se a prestar apoio técnico e assistência ao Departamento Líbio do Combate à Imigração Ilegal, que gere os tais centros de detenção; ao mesmo tempo, deram treino e equipamento, incluindo barcos e assistência técnica à Guarda-Costeira, permitindo-lhe interceptar as pessoas no mar. Enquanto isso, fechavam acordos com autoridades locais líbias, líderes tribais e grupos armados para os encorajar a parar o tráfico e aumentar o controle fronteiriço no Sul.

Torturar por dinheiro

O resultado está na cara. Juntando nessa receita a lei líbia que criminaliza a entrada ilegal no país e a ausência de leis de protecção de requerentes de asilo e vítimas de tráfico, o cenário é de refugiados detidos de forma arbitrária e enviados para centros – atualmente há 20 mil pessoas nessas instalações (eram 7000 a meio de setembro) – onde, segundo as descrições ouvidas pela AI, há “tortura, trabalho forçado, extorsão e assassinatos tanto pelas mãos das autoridades como dos traficantes, grupos armados e milícias”.

Os guardas torturam essas pessoas para obter dinheiro ou as entregam a traficantes que podem garantir a viagem graças à cumplicidade com a Guarda-Costeira. Como exemplo dos acordos entre a Guarda-Costeira e os traficantes, a ONG cita as marcas nos barcos que assinalam os que devem ser deixados passar. Em outros casos, são escoltados até chegarem às águas internacionais. Até agora, nesse ano, 19.452 pessoas foram interceptadas pela Guarda-Costeira e transferidas para os centros de tortura.

Entre 14 e 15 de dezembro, durante a conferência em Bruxelas, os líderes da UE vão reafirmar o seu compromisso com a atual estratégia, que segundo eles defendem está obtendo sucesso ao alcançar a queda do número de travessias.