Por que defendemos uma “escola sem mordaça”?

 

Por que defendemos uma “escola sem mordaça”?
Está instalado no Brasil um amplo debate, embora desprovido de forma e de conteúdo democráticos, em torno da proposta da Escola Sem Partido. Sem dúvida alguma, trata-se de uma proposição que expressa uma nova conjuntura no país, inflada após o golpe de estado contra o governo Dilma e pela ascensão política do fascismo social.

Assim, embora a política da Escola Sem Partido intente supostamente combater a “doutrinação” nas escolas, ela, na verdade, tem outro objetivo que se esconde na sua própria forma, a saber, combater o humanismo filosófico e atacar o pluralismo democrático. Não sem razão, trata-se de uma investidura sustentada pelo MBL (grupelho de profissionais juvenis a serviço da extrema direita) em conluio com a bancada parlamentar evangélica reacionária. Somente é possível compreender a visibilidade política da família Bolsonaro nesse contexto, pois são os principais defensores de mais este retrocesso cultural.

Do ponto de vista prático, a Escola Sem Partido ataca a liberdade de cátedra consagrada como princípio constitucional inalienável, quando rebaixa os temas transversais e com elevado conteúdo ético e moral à meramente doutrinação e assédio. Aliás, não é razoável pressupor que a liberdade individual signifique optar pelo obscurantismo ou mesmo pela desumanização plena. Paulo Freire já dizia que o único compromisso autêntico é com a escolha pela liberdade. É tarefa fundamental dos professores a educação escolar das novas gerações, não apenas motivados pela competência técnica e pelo compromisso político. Demerval Saviani, um dos maiores intelectuais da educação deste país, já havia insistido que teríamos que inverter esta fórmula, insistindo em educadores com compromisso técnico e competência política.

Destarte, não é possível pensar em liberdade sem igualdade, dignidade e tolerância. Não se tratam de pilares constituídos pela esquerda, mas de fundamentos constitutivos do próprio liberalismo político e filosófico. Por isso que temas como a suposta “ideologia de gênero” estão errados. Numa sociedade profundamente violenta contra mulheres em que o capitalismo patriarcal está assentado sobre desigualdades de renda entre os sexos e que apenas mulheres são assassinadas pela sua condição de ser mulher, nosso sistema educacional precisa funcionar orientado para que isso não mais aconteça. O filósofo crítico Theodor Adorno já havia dito, pensando a educação alemã após a barbárie de Auschwitz, que a educação deveria estar mobilizada para que Auschwitz não mais se repita. Um país extremamente desigualitário como o nosso, costurado por um racismo sistêmico e por um capital-patriarcalismo violento não poderia sequer considerar a possibilidade de culpabilizar/criminalizar professores que inscrevam em seus conteúdos disciplinares valores éticos fundamentais.

Não podemos recuar para uma educação religiosa. Os sistemas de ensino necessitam de laicização/laicidade para que possam cumprir sua função social de escolarização progressiva/permanente e a formação de cidadãos capazes da atuação combinada no mundo material do trabalho e no mundo simbólico da vida. Algo diferente disso, parece-nos, representaria um retrocesso de clara orientação anti-humanista. Nesse sentido, o debate não pode ser esquadrinhado em torno da ideia de família, sobremaneira quando não há “família”, como uma entificação abstrata, mas “famílias”. Independente da moral privada particular, que deve se respeitada em todas as circunstâncias – embora combatida quando atente contra a dignidade humana -, os sistemas de ensino devem ser universais/plurais, pois a multiplicidade de variações de gênero e sexualidade são parte da liberdade humana e não o contrário.

Nossa posição é claramente em defesa da liberdade de ensino e pensamento. Não podemos sucumbir ao fascismo cultural, que retroalimenta o fascismo social existente. Num país em que professores estão entre o extrato de maior qualificação e, contraditoriamente, de menores salários entre os setores de maior escolarização; em que escolas estão depredadas pelo descaso e pela corrupção institucional; em que professores adoecem constantemente pela humilhação social e pela violência física nas escolas; parece-nos que o problema da educação não estaria na liberdade de ensino, mas, pelo contrário, nas sucessivas políticas de neoliberalização que têm destruído o país e submetido a educação a um processo de desmoralização permanente. Por uma Escola Sem Mordaça em São luís!

Thays Campos,
presidenta Estadual da União Brasileira de Mulheres.
Saulo Pinto Silva,
professor do Departamento de Economia da UFMA.