A decisão do STF sobre Aécio e a insegurança jurídica do golpe

A decisão da 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal (STF), que determinou pela segunda vez o afastamento do senador Aécio Neves (PSDB-MG) do exercício do mandato, não foi bem recebida pelo Senado. Na quinta-feira (28), foi aprovado um pedido de urgência para que o plenário decida se vai cumprir a decisão da corte e a repercussão aumentou o ambiente de instabilidade entre as instituições.

Por Dayane Santos

Afranio e Serrano - Reprodução

O ministro Marco Aurélio Mello reconheceu que o país passa por uma "grave" crise institucional, em meio à possibilidade de o Senado barrar a decisão tomada pelo Supremo.

"Estamos diante de uma crise institucional, mas será suplantada porque nossa democracia veio para ficar", disse o ministro. Questionado se a crise é grave, ele concordou. "É grave, é grave."

O ministro foi um dos dois votos derrotados no julgamento que acolheu o pedido da Procuradoria-Geral da República para afastar o senador tucano. Para Marco Aurélio, o STF deveria julgar primeiro a ação de inconstitucionalidade que discute o assunto para definir se é legal afastar um parlamentar de suas funções.

A decisão do STF provocou um debate sobre a legalidade, mas a questão foi prejudicada pelo ambiente polarizado e de desgaste das instituições da República, insuflada pelo discurso midiático de punição aos políticos a qualquer custo.

A tese de que os fins justificam os meios tem prevalecido na política e – infelizmente – em algumas decisões jurídicas, em detrimento do Estado democrático de direito e do devido processo legal. Tal condição nos levou a mais profunda insegurança jurídica, que vai desde uma condução coercitiva, que só poderia ser imposta caso o intimado se recusasse a depor, a uma chuva de prisões preventivas, que se transformaram em antecipação da pena de condenação.

Com base no que estabelece a Constituição, tão aviltada nos últimos anos, alguns juristas concordam com a posição do ministro Marco Aurélio, por considerar que a medida cautelar e o afastamento estabelecido contra o senador da República não encontram amparo na legislação brasileira.

Erro

Para o professor de Direito Constitucional da PUC, Pedro Serrano, a decisão “é inconstitucional”. Segundo ele, o STF acertou ao negar o pedido de prisão contra Aécio, estabelecendo apenas uma medida cautelar de recolhimento noturno, mas se equivocou ao determinar a suspensão do mandato popular.

“E um erro porque não há previsão nem de suspensão do mandato pela mera investigação ou acusação. Pelo contrário, a Constituição prevê que só pode haver perda de mandato depois de condenado em decisão transitado em julgado”, destacou o jurista.

Ele reforça que a suspensão determinada pela Corte representa, de fato, a perda parcial do mandato. “O mandato na República é periódico, portanto quando se declara a suspensão está se determinando a perda parcial desse mandato, contrariando o artigo 55 da Constituição. O Supremo vulnera a letra do texto normativo”, destaca, se referindo ao artigo que trata da perda do mandato de deputado ou senador.

Afrânio Silva Jardim, professor de Direito Processual Penal da Uerj, também afirma que houve violação. Ele recorda o caso do então senador Delcídio Amaral, que teve a prisão decretada sem que fosse estabelecida como preventiva ou configurasse uma prisão em flagrante. Isso porque o Ministério Público estabeleceu como “flagrante” a ação de obstrução do então senador. “Cometeram um erro, acabam errando sempre”, disse o jurista.

A contradição apontada é que, ainda que a sociedade brasileira ou parte dela, defenda que o foro privilegiado deva ser revogado, ele ainda não foi. Portanto, a prisão preventiva de parlamentares é proibida pela Constituição e um político com mandato na Câmara ou no Senado só pode ser preso no caso de ter cometido crime em flagrante inafiançável.

No caso de Aécio, o enquadramento foi feito com base no artigo 319 do Código de Processo Penal, estabelecendo contra o senador tucano a cautelar de recolhimento noturno, como medida diversa da prisão.

Mas se a Constituição prevê o foro e só trata da prisão de um parlamentar no caso de crime em flagrante inafiançável, como é possível aplicar a tal “medida cautelar diversa”?

Afrânio explica que não se pode tratar o artigo 319, como medida acessória da prisão em flagrante. “Ele [o Código de Processo Penal] autoriza a afastar um delegado, um fiscal de renda, um auditor, mas um senador ou um deputado federal não, porque o tratamento é diferente”, enfatiza.

Para demonstrar o grau de contradição da decisão, o professor questiona qual seria a medida jurídica cabível em caso de descumprimento da restrição a qual Aécio foi submetido.

“Caso o senador resolva sair à noite, o Supremo deveria decretar a prisão porque não está cumprindo a medida cautelar. Mas não pode decretar prisão preventiva, pois a lei só admite prisão em flagrante para um parlamentar. Portanto, o Supremo fica desmoralizado”, argumenta.

Tribunais acuados pela mídia

Ambos os juristas, Serrano e Afrânio, concordam que temos um de desequilíbrio entre os poderes da República, que estão contaminados pela polarização política alimentada pela grande mídia.

“Há um poder desconstituinte no Brasil, que surgiu intensamente na década de 1990, produzido pelo sistema de Justiça, que gera crise institucionais constantes”, afirma Serrano.

Para Afrânio, a interferência entre os Poderes existe e é seletiva. “No caso da Dilma eles [Supremo] foram muito ciosos e não quiseram entrar no exame do que eles achavam que era o mérito do impeachment”, pontuou.

Ele salienta que a tese de que “os fins justificam os meios” tem prevalecido em nome de um suposto combate à corrupção que só fragiliza o Estado e as suas instituições.

“Muito dessa fragilidade é culpa da grande imprensa e de seu discurso punitivista de que todo político é ladrão, despolitizando as pessoas, polarizando e incentivando a cultura do ódio e, de certa forma, constrangendo e acuando os tribunais”, argumentou.

Para ele, sem dúvida, a Lava Jato foi o pontapé inicial que deu sustentação a esse discurso midiático. “Denunciar a corrupção é bom para o país, mas fragilizou com o oba-oba, em que todo mundo queria dar entrevista coletiva e aparecer na televisão. Ele esquecerem que depois é preciso apresentar o resultado com a condenação, caso contrário, fica desmoralizado. É um contexto que foi sendo levado sem que as pessoas se dessem conta de que, tal como foi o nazismo e o fascismo, ninguém mais consegue segurar”.

Diante de tamanha gravidade, questionei o professor sobre qual é a saída e como o país pode se libertar de limbo que se transformou a crise política brasileira e ele foi enfático: eleições democráticas.

“Para resolver isso só com eleições democráticas e com um presidente respeitável. O golpe foi uma consequência da instabilidade criada pelo suposto ‘combate à corrupção’. Numa eleição, sem o patrocínio das empresas, com candidaturas populares, talvez seja uma solução”, disse ele.

No entanto, ele reforça que, diferentemente da conduta dos inconformados com a vitória de Dilma Rousseff, que provocaram a crise que desembocou no golpe de 2016, é preciso aceitar a decisão soberana do voto popular. “É preciso aceitar o resultado das urnas, porque no momento não tem outro jeito senão o Estado de direito”, concluiu.