O Retrato do Coronel Ricínio

Páginas 47-55 do caderno de notas número 8 do ilustre Dr. Heródoto Tiberes de Sá. Este e seus outros cadernos, bem como os livros que lhe pertenceram, foram doados pela família à Biblioteca Mário de Andrade e estão disponíveis para a consulta pública.

Por Alexandre Figueiredo*

O Retrato do Coronel Ricínio - Tainan Rocha

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Quando o retrato do Coronel Ricínio começou a falar, eu ainda era muito jovem pra entender o absurdo da situação. Somente muitos anos depois, quando os estudos e a vida na capital me preencheram com um racionalismo cético – que geralmente vem irmanado a cinismos de ocasião – fui atinar para a anormalidade daquele enorme retrato falando no Salão Nobre do Paço Municipal.

Por que só agora resolvi lembrar-me disso, quando os ventos da morte se aproximam de meu corpo adoentado, não sei. Essa história, como tantas outras, havia caído no desfiladeiro das memórias de infância, que para cada dor real produzem uma impressão tão bela quanto inventada pela nostalgia. Por óbvio, retratos não falam! Provavelmente, minha consciência expurgou o fenômeno que agora emerge, exigindo que eu o deixe registrado. Mesmo porque, como única testemunha ocular ainda viva, cabe a mim a responsabilidade de legar esse relato a quem se interessar possa.

Era um retrato grande, desenhado à mão e bico de pena por algum artista cujo nome, infelizmente, ninguém mais se lembrava e nem se lembra. Bem pequeno, no canto direito da ilustração, seu autor cuidou apenas de deixar anotado o ano da sua confecção: 1840. Logo abaixo, colocaram apenas uma pequena placa com a inscrição "Coronel Ricínio – o Fundador" e, por todos os lados, os retratos de ex-prefeitos do município, com aquele ar sombrio que acomete as coisas passadas e não lembradas.

Em verdade, ninguém se lembrava também de quem fora o Coronel Ricínio. Sabiam, claro, por intuição, que fora um político importante, homem de posses, mas isso poderia ser dito de praticamente todos os outros personagens que davam rostos às molduras do grande Salão Nobre. Bem como sabiam, claro, que se tratava de um "Fundador" e de que fora deixado ali em 1834. Os padres diziam, de ouvir de padres mais velhos, que ouviram de outros mais velhos ainda, que Ricínio havia sido o proprietário daquelas terras onde fora fundada a cidade, dono dos escravos que, baixo suas ordens, levantaram a primeira capela. Mas isso pode ser dito de muitos "fundadores" das cidades pátrias, o que torna essa versão muito pouco conclusiva.

Quando decidi pesquisar a fundo esse estranho caso, percorri os cartórios, arquivos públicos, bibliotecas de seminários e fóruns de todas as comarcas da região em busca de registros sobre o Coronel. Nada encontrei. Parecia até que nunca antes houvera um Coronel Ricínio e que aquele retrato representava um passado mais obscuro que a explicação pelo seu repentino dom de falar.

"Falar" é apenas um modo de dizer. O que o Retrato fazia era emitir mandamentos, a princípio banais – como quando determinou que fossem fechadas todas as janelas do Paço ou que o café fosse substituído por chás – e, conforme todos foram se acostumando, mais complexos.

Em romaria, toda a cidade passou a apinhar-se no Salão Nobre para ter contato com aquele fenômeno e, muito rapidamente, para acatar suas ordens emitidas com uma voz cadavérica, estranhamente familiar mas, ao mesmo tempo, vinda das profundezas insondáveis de todos.

O Retrato passou a determinar os decretos assinados pelo prefeito e os projetos de lei da Câmara de vereadores. Ditava ao juiz a parte dispositiva de cada sentença da comarca, determinava os temas e o teor dos sermões dos padres e das pregações dos pastores e até o diretor do jornal local, extremamente zeloso de sua autonomia, só escrevia o que o Retrato mandava. Mesmo o líder desconhecido da Loja Maçônica do Grande Oeste teve sua identidade revelada, pela língua solta do Retrato, que alterou completamente os ritos das reuniões secretas da cidade. Em pouco tempo, não havia parcela de vida ali que não fosse regulada por suas ordens.

Misterioso era o porquê de todos obedecerem. Afinal, não eram propriamente conselhos sábios que o Retrato emitia, mas muitos despropósitos. Mandou, lembro-me bem apesar dos anos, que o prefeito suspendesse as obras de construção dos diques que continham as águas do rio nas épocas de muitas chuvas, o que levou à maior inundação da história da cidade e até a algumas mortes. Graças a outra de suas determinações, foi aprovada uma lei com 182 artigos regulando o vestuário obrigatório dos munícipes. Para descontentamento das crianças e, como de praxe, sem qualquer explicação, proibiu a prática antiga de pedirem doces pelas ruas nos dias de Ano Novo.

Não sei se obedeciam por medo ao sobrenatural ou pelo conforto de entregar a outrem o peso da tomada cotidiana de decisões (ainda que outrem fosse um absurdo retrato falante). Afinal, quando algo saía mal, podia-se responsabilizar o retrato, eximindo a culpa. Por outro lado, quando tudo corria bem, a certeza do acerto no guiar-se por aquelas ordens era reforçada.

Contudo, o Retrato foi mandando cada vez mais. Determinava os casamentos e os nomes das crianças. Escolhia os candidatos às eleições, sempre únicos, já que ele proibira a existência de partidos de oposição (e para quê, se a eleição definia apenas os nomes dos que o iriam obedecer?). Assim, aquele conforto inicial foi dando lugar a um desconforto que, rapidamente, evoluiu para uma sensação insuportável de opressão.

As pessoas passaram, no íntimo, a questionar o dever de obediência àquele Retrato. Com as portas fechadas e à luz de velas, bem ao gosto das autoridades daquele tempo, abriu-se um longo debate sobre a justiça de uma eventual insubordinação. Os chefes políticos e juristas alegavam que desobedecê-lo seria uma afronta aos princípios mais antigos, um ataque à tradição (que deveria reger a cidade). Por sua vez, os religiosos superaram as divisões comuns e concordaram que, se o Retrato falava, era por permissão de Deus e que só Deus poderia novamente calá-lo.

Esse impasse intelectual só foi superado quando o vendedor de laranjas da praça decidiu reagir com violência à ordem de substituir aquela fruta por limões. Conclamando a todos os inconformados, chefiou a rebelião.

Rapidamente, as insatisfações e despeitos se somaram e descambaram para a agressão indiscriminada. Acusadas de omissão e cumplicidade, as autoridades e classes proprietárias foram atacadas: assassinatos em massa foram cometidos, propriedades destruídas, igrejas incendiadas. A ira popular convergiu para o prédio do Paço, disposta a atear fogo e destruir aquela maldita galeria de onde o Retrato do Coronel Ricínio falava.

Já com o prédio em chamas, houve a invasão. Populares, sob a liderança do vendedor de laranjas, adentraram o Salão Nobre, enlouquecidos pela fúria, para consumar a destruição do passado.

Porém, para espanto de todos, o Retrato não estava mais lá.

O restante da galeria sim, e cada uma daquelas representações dos antigos chefes, mesmo sem nunca terem falado, receberam sobre si o ímpeto de destruição que estava destinado ao Retrato do Coronel Ricínio. Ele mesmo, contudo, sumira tão misteriosamente quanto começara a falar. Foram ordenadas buscas pelas cidades e redondezas, sem nenhum sucesso. Simplesmente, desaparecera.

Quando a ordem voltou a imperar, após uma pesada intervenção das tropas estaduais, os inquiridores se negaram a responsabilizar os desmandos de um Reatrato falante por aquela onda de destruição. O enorme inquérito, ao qual dediquei muitas noites em claro, não traz uma única palavra sobre isso, preferindo associar o incidente à raiva tradicional que os pobres devem nutrir pelos ricos. Sentenças exemplares contra as lideranças da rebelião foram prolatadas e a história verdadeira ficou relegada unicamente à memória de quem a presenciou.

Hoje, mesmo na minha cidade natal e no seio de minha família, há quem considere que perdi o juízo por começar a "inventar histórias" e que nunca existiu um coronel Ricínio ou seu retrato.

Mas sempre que observo os comportamentos e decisões, quer seja de populares, quer seja das autoridades, não posso deixar de supor que o Retrato do Coronel Ricínio deixou a galeria do Paço para encontrar uma forma de continuar eternamente soprando suas ordens nos ouvidos de cada um.

Ilustração: Tainan Rocha