Aira Bonfim: Você conhece algum homem trans?

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Meninos Bons de Bola - Foto: Fábio Tito

Essa foi uma das minhas perguntas motivadoras nos últimos meses. No debate sobre equiparidade de direitos e os espaços de diálogo das diferentes identidades de gênero, a necessidade de conhecer os outrxs é fundamental para primeiro, despir a nossa arrogância sobre achar que sabemos de tudo, e segundo, nos permitir aprender com esses atores de outras – porém nossas – lutas sociais. Com vocês, Raphael Martins e Pedro Carll, integrantes de uma das primeiras equipes de futebol de homens trans que eu tenho notícia: Os Meninos Bons de Bola. (entrevista realizada durante o Seminário Internacional Fazendo Gênero 11, a 13ª edição Women’s Worlds Congress em Florianópolis, SC- Brasil — Agosto de 2017)

Pra início de conversa, esse texto não é feito exclusivamente para pesquisadores ou interessados em discussões sobre Gênero. Poderia ser um texto sobre futebol. Mas também não se enquadra unicamente no contexto do esporte. É uma conversa sobre pessoas e vidas. É fluido. É sobre a minha curiosidade e alarmante constatação de que eu não conhecia, nos meus mais de 30 anos, nenhum homem transexual. A imensa maioria da população sequer sabe que essa identidade de gênero existe. Também gostaria de já avisar que não é um texto acadêmico pois desrespeita a dureza da forma e das metodologias. É dessa maneira uma pesquisa libertina e feita no gramado da UFSC. Mas é um texto comprometido com os locais de fala dos meus dois novos amigos: o Rapha e o Pedro.

O homem trans foi designado mulher ao nascer, por critérios biológicos (nasceu com vagina), mas se identifica com o gênero masculino ao longo da vida – por vezes ainda muito cedo ou desde de sempre segundo os próprios meninos. Trans podem ser heterossexuais, bissexuais, homossexuais ou pansexuais, assim como qualquer outra pessoa. Eu, você ou eles. Identidade de gênero é uma coisa, orientação sexual é outra e nossa característica biológica, o sexo, é ainda outra coisa.

Pedro tem 22 anos e é formado em Marketing. Mora com a mãe e a namorada. Morou em muitos bairro (um nômade!), mas foi na cidade de Barueri que passou dos 8 aos 17 anos. Disse ter vontade de fazer outro curso de graduação, algo como Sociologia, para continuar a estudar e dar sentido as ações fomentadas pelo próprio time de futebol. Com a aparência masculina desde os 2 anos, Pedro conta que a sua mãe se recorda de suas escolhas de roupas “de meninos” desde muito novo, e o modo de andar, igual a dos garotos, fez com que tivesse que usar um colete corretivo para a coluna ainda criança. Pedro é irmão gêmeo de Ana Maria, detalhe esse que colaborou com as escolhas sempre duplicadas e feminilizadas na hora de vestir os irmãos — ou irmãs, época de menina cis gênero do Pedro. Disse ter jogado bola sem grandes dificuldades entre os garotos da escola e com a própria irmã. Contou também com o incentivo do tio, boleiro e responsável pelos ensinamentos técnicos que Pedro tem sobre futebol.

Foi no Cursinho Popular Transformação, mais exatamente em julho de 2016, que Pedro se assumiu trans. Foi convidado a partir dessa decisão a falar em público em alguns eventos e a dessas experiências afirmou se tornar cada vez mais forte e confortável na nova identidade. A exposição pública fez com que novos contatos com outros homens trans acontecesse. Catu o conheceu na platéia e o convidou para conhecer o time Meninos Bons de Bola. Foi também quem ajudou o Pedro na fase “Pré T”, como é chamado ao período anterior a transição ao tratamento hormonal.

Raphael tem 30 anos e circulou literalmente por diferentes regiões São Paulo: morou na Vila Carrão, Cidade Dutra, Butantã e finalmente na Cachoeirinha na zona norte. Abandonou e passou a odiar o curso de Serviço Social na Uninove faltando um semestre para o recebimento do diploma. Disse que a falta de diálogo sobre a utilização do seu nome social e a briga para a criação de um banheiro inclusivo para homem trans foram decisivos para a não conclusão da universidade. Rapha tinha amigos no curso e segundo ele, muito em função da sua dedicação aos estudos e sua experiência profissional, se tornou uma espécie de professor auxiliar da classe. Apesar de uma minoria conservadora e religiosa, recorda-se com carinho da maioria dos professores que aceitaram com facilidade a utilização do seu nome social durante as aulas – o nome social é o nome pelo qual as pessoas preferem ser chamadas cotidianamente, em contraste com o nome oficialmente registrado em cartório, o nome civil, que não reflete sua identidade de gênero.

Com dez anos Raphael, ainda como menina cis, foi levado pelo padrinho, a seu pedido, para jogar futebol numa escolinha de meninos do bairro. Depois de um ano já jogava em São Caetano. “Entre meninos era onde eu podia jogar por igual”. Rapha disse gostar de estar naquele ambiente, e no seu currículo boleiro, ostenta as fraudes cometidas pelo técnico da época, que, através do RG do filho, inscrevia Maíra (nome civil do Raphael) nos campeonatos de base competidos pela escola de futebol. Magrinho e sem peitos, aos 14 anos Raphael passava desapercebido nos torneios e ganhou por 3 vezes o troféu de melhor artilheiro.

A partir dos 5 anos Raphael se tornou fanático pelo São Paulo F.C. Os familiares logo o converteram para torcer pelo time tricolor paulista. Tinha o sonho nessa época de ser jogador profissional – na categoria masculina ou feminina. Porém, foi na casa do mesmo time do coração, no estádio do Morumbi, que no clássico entre SPFC e Corinthians desse ano, Raphael foi agredido pelos policiais de plantão. No desconforto de relatar o episódio violento, Rapha descreve com asco o momento em que levantaram sua blusa para conferir seus seios e quando ridicularizaram o seu RG. Foi ameaçado e expulso da partida antes mesmo de entrar na arquibancada.

Na época do episódio (ou transfobia para dar nome aos bois), Raphael ainda não havia feito a mastectomia, procedimento cirúrgico adotado por homens trans de remoção total das mamas. Ele se refere com muito orgulho e brilho nos olhos da operação, como se a última referência física e visível que ainda o delatava como mulher tivesse desaparecido. A retirada dos seios também colabora com o fim de uma glândula que produz hormônios femininos e ajuda na fase de tratamento hormonal masculino (que trataremos mais abaixo).

Raphael e Pedro são homens trans e compõe a diretoria do time Meninos Bons de Bola. Mobilizam um grupo de pelo menos outros 20 jogadores para treinar futebol na cidade de São Paulo. Os treinos acontecem aos domingos bem cedo, numa quadra cedida por um sindicato perto da Catedral da Sé, no centro. Mesmo cidadãos de uma metrópole como São Paulo, eles não foram capazes de me identificar um único espaço de sociabilidade dedicado exclusivamente ao grupo de homens trans.

E foi a partir desse dado que Raphael, que há um ano atrás, ainda como educador social do Centro de Referência da Diversidade (CRD) e já homem trans, notou a ausência desse público no serviço oferecido pelo centro. O CRD pertence a Secretaria de Assistência Social em convênio com a Prefeitura de São Paulo. O local desenvolve ações que possibilitam a inclusão social e a geração de renda para uma gama diversa de públicos em situação de vulnerabilidade e risco social – travestis, profissionais do sexo, portadores de HIV/Aids, transexuais e outros. Há desde aconselhamentos jurídico, como encaminhamentos na área da saúde, oportunidades de emprego, espaço de convivência, rede assistencial e produção de documentos.

Em apenas um mês, depois de uma palestra no CRD Raphael se identificou como trans e a seu pedido fez a troca do nome escrito em seu crachá de trabalho. Tempo depois, com a ajuda da psicóloga Moira Escorce, Rapha mobilizou as redes sociais e organizou um evento no Facebook para reunir homens trans da cidade. O centro oferecia encaminhamento para criação do nome social e na lista só constavam mulheres trans. Começou então a pesquisar na internet formas com que os meninos pudessem ocupar aquele local e permanecerem lá por mais tempo, com mais trocas. Nas redes sociais foi o futebol o esporte escolhido entre as atividades sondadas. O jogo organizado na sequência seria apenas um atrativo para que esses homens trans pudessem lutar e correr atrás das demandas do e em grupo. Para o Pedro, o time, fundado no dia 26 de Agosto de 2016, se tornou o único espaço de convivência entre homens trans que ele conhece.

 

Se os homens trans não são representados em lugar nenhum, o futebol, por sua vez, se mostrou um grande nó articulador desses encontros e visibilidades. Segundo eles, apareceram muitos garotos no início e o mais surpreendente, estavam acompanhados por seus familiares, namoradas, amigos e irmãos. Os novos contatos e conversas proporcionaram esclarecimentos sobre direitos, nome social, sexo e principalmente, dúvidas sobre o processo de transição hormonal.

O tratamento hormonal para homens trans é feito com a aplicação de testosterona. Raphael passou muito mal quando tomou a injeção pela primeira vez com 15 anos com a ajuda de um massagista do clube de futebol. Ele me contou que hoje existem 3 tipos de medicações hormonais disponíveis no mercado para homens transexuais: Durateston (usado de 15 em 15 dias e no valor de 10 reais a caixa) , Deposteron (usado a cada 20 dias e com valor entre 35–40 reais) e o melhor de todos, Nebido (uma injeção de 4 ml com durabilidade de 3 meses no corpo e que custa 450 reais a dose). As mudanças são gradativas e depende de corpo para corpo. Voz grave e pêlos no corpo são algumas das alterações mais visíveis. Porém, em conversa, detectamos que o consumo desses diferentes hormônios por homens trans é ainda uma área carente de pesquisas médicas e laboratoriais. Existem pessoas adoecendo e discursos reproduzidos entre especialistas que ainda não foram provados.

Em um censo que organiza na internet, o ativista João Nery (primeiro homem trans a se submeter a cirurgias de redesignação de gênero no Brasil, há mais de 30 anos) disse haver mais de 3 mil transhomens no Brasil durante a matéria produzida pela EBC. A falta de representatividade, quantidade, direitos e visibilidade fazem dos homens trans um grupo ainda mais marginalizado, não só na área médica, mas também nos circuitos que discutem Gênero e Direitos Humanos, como na própria comunidade LGBT. Ou seja e repetindo: homens trans não são representados em lugar nenhum.

A entrevista com meus novos amigos foi realizada sobre o gramado da Universidade Federal de Santa Catarina durante o Seminário Internacional Fazendo Gênero 11, a 13ª edição Women’s Worlds Congress, que teve lugar pela primeira vez na América do Sul. O evento que reuniu cerca de 8 mil pessoas, de todas as partes do mundo, tanto da academia como do ativismo para debater Gênero, ouvir outras vozes, novas propostas, valorizar saberes, ampliar horizontes de estudo e de ativismo (pelo menos é o copie e cole exato da apresentação disponível no site oficial do evento).

Raphael comentou que se interessou muito pela proposta do encontro Fazendo Gênero. Alguns homens trans de Florianópolis, 4 ou 5, estariam presentes no evento. Depois de 11 horas de ônibus e 144 reais gasto no trecho, a primeira impressão manifestada por Raphael e Pedro foi o desejo de permanecerem numa cidade arborizada e calma como Florianópolis para sempre. Pedro também teve curiosidade pelo ponto de vista de fala das mulheres, pensando principalmente na representatividade proporcionada pelo evento e pouco existente em outros locais de debate.

A aparência masculina num evento majoritariamente composto por mulheres já criou tensão para os dois dirigentes visitantes logo no momento do credenciamento. Entre o cadastro, pagamento e retirada dos crachás, Raphael e Pedro foram desnecessariamente expostos aos seus nomes civis. Apesar da inscrição do evento contemplar o nome social, o despreparo da pessoa representante da organização colocou os dois em numa situação embaraçosa e constrangedora logo de início. Para eles faltou preparado da equipe de voluntários e sensibilidade sobre as outras diferenças.

Pedro gostaria de ter ouvindo mais sobre o posicionamento das mulheres ativistas em relação aos homens trans, uma vez que acredita que a maioria das pessoas são julgadas por seus corpos biológicos. E por falar em corpos, um dos elogios ao Fazendo Gênero foi a adoção de placas de acessibilidade trans nos banheiros da universidade (tomara que para além dos dias do encontro hein UFSC!). Segundo eles, é constrangedor ter vontade de ir a um banheiro não inclusivo. Há mulheres que estranharão a presença de homens trans e de outro lado, há homens que poderão ameaçá-los.

Se nem mesmo a comunidade LGBT ainda não se livrou da transfobia, a luta contra o preconceito contra homens trans ganha um estrada longa em tempos sombrios em que o tema Direitos Humanos ganhou erroneamente status partidário. Mas é nessa estrada irregular e de asfalto que o time joga e dribla essas conjunturas desfavoráveis, e mais do que isso, ganha uma torcida mais que organizada pra vestir a sétima cor do arco-íris e lutar lado a lado por um futebol mais inclusivo e uma sociedade mais tolerante.
Símbolo da igualdade entre as identidades de gênero
Dia 26 de agosto de 2017 é dia de comemoração de um ano de luta e futebol do time Meninos Bons de Bola. Na frente das antigas colunas da fachada do estádio do Pacaembu será possível conhecer essa equipe e dividir com ela um bom futebol jogado na rua, ou no caso, na Praça Charles Miller. O Festival Ocupa Pacaembu é uma iniciativa que faz parte da 7ª Edição do Estéticas das Periferias, promovido pela organização Ação Educativa e de curadoria coletiva com outros coletivos de artistas da periferia e organizações. O Museu do Futebol é um dos idealizadores dessa programação e acredita que um #futebolparatodos é muito melhor.